Microlembranças

Data 26/março/2004

     A cena do dia estampada pelo jornal era a de um mico em meio aos fios elétricos da rede de energia da rua. Teve um calafrio. Pertencia à comunidade anônima dos amantes dos animais. E tratava-se de um espécime meio radical. O que o punha muita vez em conflito consigo mesmo: ajustar-se à sua contemporaneidade sem abdicar da intransigente condição de defensor perpétuo dos animais.
Isso porque vive um mundo em que matar continua cada vez mais uma rotina na ordem do dia. Matam-se a si e aos outros: homens, mulheres, crianças e velhos. Inocentes, suspeitos e insuspeitos pagam pelo que não sabem. Regimes políticos em que matar não é crime, em que morrer matando é sublime.
Imagine-se, pois, o sujeito adepto à vida de qualquer, inclusive de insetos. Os insetos coabitam neste universo. No entanto, tidos já pela sua própria condição de ser: insetos, são sempre vistos como um potencial perigo, bichos que, por nocivos ao bem-estar do homem, devem ser automática, imediata e impulsivamente exterminados.
Os mosquitos! Malditos transmissores antigos de doenças de grande risco. Desde o impaludismo. Há que exterminá-los de imediato. O seu abate implica, não o fim, a contenção das suas doenças; não a extinção da endemia, um arrefecimento do epidêmico. Para a suspensão do desassossego. É de quem incapaz de extinguir o mal vai, infinda e desesperadamente, extinguindo os que involuntariamente o transmite.
As baratas! Como não evitá-las! Não deixá-las escapar! São a encarnada imagem do nojoso, da contaminação! Tanto que tornou-se enorme a rede de indústrias de inseticidas. Tratamento não diferenciado se dispensa aos demais bichos meio-domésticos, quando esporadicamente se insurgem pelas casas, nos (pseudo)quintais, na varanda, no quarto de despejo. Sina das aranhas, dos besouros, dos sapos, das mariposas, das lagartixas, das formigas, dos embuás, das lesmas, das abelhas.
Um mico por aqueles fios de alta tensão. Como fora possível permitirem um fato desse? O pobre macaquinho pensando percorrer algum lugar de parentesco com mata, árvores, sem imaginar a iminência de uma morte súbita. Havia que se ter tomado alguma medida rápida e eficaz. Chamar os bombeiros, alçar uma grande vara, chamar o zoológico de onde decerto escapara. Alguma coisa salvacionista deveria ter sido feita antes da fatal eletrocussão a qualquer momento.
Todavia, toda aquela aflição tratava-se de um puro subjetivismo anacrônico, pois estava ante uma fotografia trazida por um jornal. O que pressupunha pelo menos um dia (se não uma foto de arquivo à espera de publicação) depois do fato. Àquela hora o mico havia desaparecido (fato bem mais provável), eletrocutado por um fio qualquer daqueles, no qual não se pode tocar, ou resgatado por alguma intervenção a tempo (fato muito pouco provável).
Um macaco solto em plena metrópole deslizando pelas árvores elétricas daquela selva de prédios! Vieram-lhe evocadas, em conseqüência, duas situações vividas relacionadas com micos. Formado, diploma no bolso, ideais e ideologia lustrados, jogou-se no oceano da vida. E os caminhos que passara a percorrer, os quais levavam-no à ilha em que aportara e à civilização de que saíra, davam muitos bichos, pois se tratava de uma única estrada cuja travessia fazia-se em meio a quilômetros de mata virgem. Um reserva floresta do Estado. Micos aos montes. Dentre eles a relíquia anunciada em extinção: o microleão.
A outra. Um apartamento num dos mais famosos prédios da metrópole. Um sujeito apaixonado por micos e um mico que clandestinamente lhe fazia companhia. Morto o cara em trágico acidente, o mico foi parar numa gaiola. E esse desastre não demorou também para matá-lo.