{"id":167,"date":"2006-08-10T22:47:14","date_gmt":"2006-08-10T22:47:14","guid":{"rendered":"http:\/\/poetagem.com.br\/?p=167"},"modified":"2016-09-23T22:49:06","modified_gmt":"2016-09-23T22:49:06","slug":"ansiosas","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/poetagem.com.br\/2006\/08\/10\/ansiosas\/","title":{"rendered":"Ansiosas"},"content":{"rendered":"
Duas senhoras. Idosas. Vi\u00favas. Sozinhas. Cada qual com suas morrinhas. Enternecem-se. Adoecem. Melhoram. Adoecem. Nada devem \u00e0 imagem estereotipada: j\u00e1 meio curvadas, desmusculadas, indesej\u00e1vel e irrefre\u00e1vel barriga, rosto em rugas do tempo e das, agora, mais acentuadas rusgas.
\nMatam o tempo, que mata-as com a morfina rotina cujo ritual se inicia j\u00e1 bem de manh\u00e3zinha. Acordam com os p\u00e1ssaros. A uma delas de sono atormentado, muitas vezes aos p\u00e1ssaros se antecipam um ou outro long\u00ednquos galos. Como fora menina vivida em s\u00edtios, fazendas e ali, em pleno centro da cidade, fica com a desconfian\u00e7a de que sejam puramente imagin\u00e1rios. E a\u00ed fisga-lhe mais ainda o\u00a0 atormentante medo de perder-se de si mesma, tornando-se noutra completamente desconhecida de seus entes queridos. O que sabe muito bem, porque viu acontecer com mais de uma amiga sua. Por\u00e9m, afian\u00e7am-lhe que sempre h\u00e1 alguns quintais mais \u00e0 margem da cidade.
\nA outra n\u00e3o. Dorme pesadamente. Sono t\u00e3o de pedra que raro lhe \u00e9 ouvir o rel\u00f3gio dos bem-te-vis, a barulhada dos pardais. Decerto de tanto ouvir a outra dizer, pensa ouvi-los \u00e0s vezes. Mais parecem povoar, isto \u00e9, incomodar seus sonhos. Estes, sim, s\u00e3o por ela bem vividos, longos e constantes. Venturosos. Raros os ruins. T\u00e3o bons que fica deprimida um bom tempo com seu travesseiro (e isso \u00e0s vezes perdura o dia inteiro) por ter acordado.
\nDurante o desjejum sempre a sonhadora \u00e9 quem mais fala. A outra fala pouco. Escuta muito. Sonos intermitentes, achaques diversos, o que a empurra a muitos m\u00e9dicos. A outra com a audi\u00e7\u00e3o bem conturbada (imaginem! escuto muito bem) fala, fala, fala. Fala quase irretorquivelmente, dos seus sonhos. Sempre grandiosos. Ela, em todos, a figura de destaque. Quando anunciados como ruins, resume-os de forma perempt\u00f3ria e obscura. O que a outra logo entende ter havido insucessos para a narradora-personagem. Assim consomem caf\u00e9 com leite p\u00e3o e manteiga j\u00e1 preparados pela que sai da cama sempre antes do sol.
\nCaso n\u00e3o haja ida programada a m\u00e9dico ou dentista pela manh\u00e3, quando ambas v\u00e3o, embora apenas uma ir\u00e1 \u00e0 consulta, sentam-se \u00e0 varanda e p\u00f5em-se a passear pelos jornais assinados pela casa. Cada qual com um. Passados os primeiros momentos da persecu\u00e7\u00e3o, quase sempre em acentuado sil\u00eancio, a que sonha encontra algo que julga conveniente ser lido em voz alta, para que a outra o saiba, mesmo que essa nunca sinalize estar interessada em ouvir, pois, embora a outra se ponha a ler em voz alta, continua firmada no jornal que perscruta.
\nNa verdade, a que se p\u00f5e a ler em voz alta, com o jornal segurado com as duas m\u00e3os e aproximado aos \u00f3culos, sequer repara se outra lhe est\u00e1 dando a devida aten\u00e7\u00e3o. Vai lendo, lendo, lendo. Enquanto isso, aquela, talvez para impedir como pode a atrapalha\u00e7\u00e3o, l\u00ea movendo os l\u00e1bios numa leitura semipronunciada que, por certo, de alguma forma, assegura-lhe a concentra\u00e7\u00e3o. A outra continua. Vai de uma a outra das not\u00edcias que certamente selecionara para aquele ritual quase di\u00e1rio. Praticamente todas elas se referem a roubos, assaltos, assassinatos, mortes.
\nVem, depois do almo\u00e7o, o jornal televisivo a que a sonhadora se dedica com a televis\u00e3o em alto e bom som. Basta ver um fato daqueles, um desastre qualquer, que se p\u00f5e a chamar insistentemente a outra que, se chega atrasada, ouve a lamenta\u00e7\u00e3o irritada daquela. E depois do programa de receitas, a que a sonhadora firmemente assiste do mesmo modo chamando a outra para alguns pratos diferentes e se lamentar\u00e1 irritada, se ela (que quase sempre assim procede) novamente chegar atrasada, vem a novela da tarde.
\nA esta tamb\u00e9m ambas se entregam. Mas tamb\u00e9m com a novela, tanto \u00e0 de agora como \u00e0s da noite, acontece algo semelhante ao que com a leitura dos jornais. A sonhadora, durante toda a novela fala para as personagens, fala das personagens, d\u00e1 gritinhos de torcida ou de receio, prognostica a\u00e7\u00f5es que cometer\u00e3o as personagens. A outra, numa poltrona mais bem afastada a tudo caladamente assiste.<\/p>\n
Novela finda, a sonhadora, logo se entrega aos preparativos para dormir, dizendo-se tomada de sono. A outra ficar\u00e1 mais. Um outro programa, ou filme. Ir\u00e1, assim, aquecendo o in\u00edcio de seu intermitente sono com pequenos cochilos ali na poltrona.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Duas senhoras. Idosas. Vi\u00favas. Sozinhas. Cada qual com suas morrinhas. Enternecem-se. Adoecem. Melhoram. Adoecem. Nada devem \u00e0 imagem estereotipada: j\u00e1 meio curvadas, desmusculadas, indesej\u00e1vel e irrefre\u00e1vel barriga, rosto em rugas do tempo e das, agora, mais acentuadas rusgas. Matam o tempo, que mata-as com a morfina rotina cujo ritual se inicia j\u00e1 bem de manh\u00e3zinha. […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[17],"tags":[44],"yoast_head":"\n