{"id":188,"date":"2006-11-01T23:07:39","date_gmt":"2006-11-01T23:07:39","guid":{"rendered":"http:\/\/poetagem.com.br\/?p=188"},"modified":"2016-09-23T23:08:19","modified_gmt":"2016-09-23T23:08:19","slug":"vida-morte-vida","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/poetagem.com.br\/2006\/11\/01\/vida-morte-vida\/","title":{"rendered":"Vida morte vida"},"content":{"rendered":"
N\u00e3o obstante os edif\u00edcios e altos pr\u00e9dios, a tardezinha se insinuava pelas frestas das paredes de vidro. O dia esva\u00eda-se por seus mil escaninhos. A noite se avizinhava com seu carossel feito de cotidiano e sortil\u00e9gios. O corpo, este pouco considerado term\u00f4metro da vida, tamb\u00e9m acusava que o dia era findo e que a noite vinha com seus rem\u00e9dios de sossego e descanso.
\nHora de ir suspendendo o infindo trabalho banc\u00e1rio. Deixar tudo engatilhado para amanh\u00e3. Hora da pausa necess\u00e1ria. Assim conscientizada, p\u00f4s-se nos arranjos de t\u00e9rmino de expediente. Tudo ajustando para no dia seguinte chegar, retomar o fio da meada e redisparar a rotina da vida.
\nProntos os afazeres burocr\u00e1ticos da papelada banc\u00e1ria configurada em contas correntes, extratos, border\u00f4s, duplicatas e etc, entregou-se ao mec\u00e2nico trabalho de cerrar cortinas, desligar lumin\u00e1rias e uma ou outra vidra\u00e7a que, apesar do ar-condicionado, mantinha discretamente aberta.
\nIa nesse ritmo descontra\u00eddo e de certo modo prazeroso de fechamento, quando se deparou com um estranho ser \u00e0 sua sala. Ora surdia por ali uma pequena mosca, at\u00e9 mesmo um pernilongo, que enxotados logo desapareciam. Mas agora, numa dobra da cortina de sua janela central, havia um grande inseto. Comprido feito um graveto e de asas tamb\u00e9m compridas e duplas. Ao tocar na cortina, o inseto voou para outro lugar da sala. Assentou-se justamente sobre sua mesa. Dali para os pap\u00e9is de uma prateleira.
\nFicou entre irritada e apreensiva. N\u00e3o era adepta de pura e simplesmente eliminar os animais. Todavia aquele inseto indo de um canto para outro retardava sua ida para casa. E n\u00e3o queria deixa-lo ali, pois intu\u00eda que lhe podia ser fatal. Pretendia p\u00f4-lo para fora. Por isso, reabrira todas as cortinas e janelas. Contudo, o inseto voava menos para as aberturas que lhe davam o l\u00e1 fora, seu devido lugar, com arbustos verdejantes e floridos.
\nCerta de que o m\u00e9todo de enxot\u00e1-lo era definitivamente invi\u00e1vel e firmada na decis\u00e3o de que ali o inseto n\u00e3o poderia permanecer, passou a pensar em qual seria a alternativa. Relanceou pela cabe\u00e7a quem mais poderia estar ainda ali e que lhe pudesse ajudar. De imediato veio-lhe o guarda de plant\u00e3o. N\u00e3o deveria recorrer a ele. \u00c9 sujeito ansioso, querer\u00e1 logo resolver a quest\u00e3o e acabar\u00e1 sendo desastrado, pondo fim ao inseto. E isso ela n\u00e3o queria fazer nem que fizessem.
\nLembrou-se de que estava sem condu\u00e7\u00e3o. Tomaria um coletivo como procedia, estando em tais circunst\u00e2ncias, ou ligava pedindo ao marido que viesse busc\u00e1-la. Isso quando n\u00e3o fosse muito corrido para ele, que retomava o trabalho diariamente \u00e0s sete da noite. Todavia a lembran\u00e7a acometeu-a decerto porque excepcionalmente n\u00e3o precisaria ir ao trabalho aquela noite.
\nEle veio. Ela o esperava \u00e0 porta do banco. Sem nenhum pejo, pediu-lhe que antes fossem at\u00e9 a sua sala para que ele removesse para fora dela, vivo, repetiu enfaticamente: vivo, por favor, um inseto que teimava em n\u00e3o sair de l\u00e1. E instant\u00e2nea e concomitantemente ela e o guarda trocaram um olhar. Ele por certo surpreso e logo entendendo por qu\u00ea n\u00e3o o procurara para que efetuasse t\u00e3o banal servi\u00e7o.
\nTamb\u00e9m o marido, a princ\u00edpio utilizando-se dos mesmos procedimentos aos quais recorrera a mulher, n\u00e3o conseguiu enxot\u00e1-la. Tratava-se de uma bela lib\u00e9lula, disse ele contemplando-a por instantes. Mas o lusco-fusco restava ainda por minutos. Ia j\u00e1 se desfazer por completo. Teve ent\u00e3o a id\u00e9ia de aproximar dela delicadamente uma r\u00e9gua. Passados alguns instantes a lib\u00e9lula estava inteiramente sobre a r\u00e9gua. Ent\u00e3o, cuidadosamente, vagarosamente, chegou at\u00e9 a janela central e impulsionou-a para fora.
\nA lib\u00e9lula assentou-se em um l\u00edrio que pendia para a janela. Mulher e marido ficaram, por momentos, agraciados e gratificados, contemplando aquele quadro singular.
\nTodavia fora mesmo por fugaz momento. Pois um belo, saud\u00e1vel e estridente bem-te-vi, conhecido da banc\u00e1ria, por ali sempre estar estridulando seu grito bom de p\u00e1ssaro, s\u00fabito pegou a lib\u00e9lula. E ainda n\u00e3o estavam refeitos do susto, e ele j\u00e1 a havia engolido por completo e gorjeava fortemente feliz. Decerto pelo apetitoso jantar efetuado. Restava-lhe procurar o pouso para o justo sono.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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