{"id":198,"date":"2006-01-12T23:15:30","date_gmt":"2006-01-12T23:15:30","guid":{"rendered":"http:\/\/poetagem.com.br\/?p=198"},"modified":"2016-09-23T23:16:09","modified_gmt":"2016-09-23T23:16:09","slug":"mosca-inazul","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/poetagem.com.br\/2006\/01\/12\/mosca-inazul\/","title":{"rendered":"Mosca inazul"},"content":{"rendered":"
As mariposas e seus assemelhados v\u00eam \u00e0 l\u00e2mpada de centro \u00fanica sobre a escrivaninha onde se entrega um sujeito \u00e0 leitura ou \u00e0 escritura. Os besouros das esta\u00e7\u00f5es, sobretudo os primaveris e veranis, que, filhos prol\u00edferos do aquecimento, pululam por onde quer que seja. Ent\u00e3o, em noites dessas toda sorte de insetos, filhos dessas esta\u00e7\u00f5es, infesta os ambientes e ficam dardejando em b\u00eabados v\u00f4os de um canto a outro, trope\u00e7ando por quantos m\u00f3veis se lhes deparam, sem que em nada lhes afetem a integridade f\u00edsica.
\nDecerto exercem-lhes sedu\u00e7\u00e3o tamanha esses filetes em n\u00e9on luminosos e lhes mentem a possibilidade de uma quentura que se furta, n\u00e3o correspondendo ao clar\u00e3o da luz. E eles disputam-na. Mut\u00edplices em porte, forma e cor. Zumbem alguns encorpados pelo espa\u00e7o em v\u00f4os desastrados cujas aterrissagens quase sempre decorrem de aud\u00edveis colis\u00f5es. Os pequeninos v\u00e3o mais a dist\u00e2ncia. Talvez com receio de que tanta claridade os afete. E destes alguns picam como pernilongos que n\u00e3o s\u00e3o. Do\u00eddas mordidas que quase sempre lhes resultam em morte
\nNessas ocasi\u00f5es, o incomodado leitor ou escrevinhador demanda em estrat\u00e9gias que possam despistar incovenientes intromissores. Aciona o ventilador de teto. Acende uma l\u00e2mpada com maior pot\u00eancia de luz em um outro canto. Quando mais impaciente, apela aos aeross\u00f3is mata-moscas e espargem veneno pelo espa\u00e7o.
\nDado que o calor \u00e9 tanto, \u00e0s esc\u00e2ncaras t\u00eam de ficar janelas e porta. Ent\u00e3o entram ali, quase sempre em lusco-fuscos, sabe-se l\u00e1 por qu\u00ea, seres n\u00e3o necessariamente amantes da luz noturna. Certo colibri, certo bem-te-vi que depois n\u00e3o conseguem sair. Certos pardais, quem sabe a vistoriar a possibilidade de novos beirais. Borboletas, preta, amarela, a enorme azul asa-delta, a alaranjado-ab\u00f3bora de pontilhados preto e branco feita. J\u00e1 houve em seu esbravejante v\u00f4o negro frisado de amarelo a visita de mamangaba. E tamb\u00e9m j\u00e1 esteve a mosca azul.
\nEsta chegou pousando no monitor. E foi amor \u00e0 primeira vista. Encantou-se de tal modo com a luz-tela, que pareceu querer ficar para sempre dela. Esquadrejou todo aquele ludibriante ret\u00e2ngulo. E depois de tudo perscrutar (ou beijar) vagarosamente, fixou-se no canto esquerdo azul bem mesmo sobre a barra de hor\u00e1rio. E ali parecia adormecida. E como n\u00e3o a incomodaram, dali n\u00e3o sa\u00edra, mesmo depois que tudo se apagara. No outro dia, l\u00e1 estava ainda, apenas com a diferen\u00e7a de que era j\u00e1 cad\u00e1ver.
\nMas o inusitado se fizera outro dia. Afinal o admiss\u00edvel e o inadmiss\u00edvel at\u00e9 que por aquelas amplas janelas dadas ao quintal podiam irromper haviam acontecido. Pois ainda n\u00e3o. Certa noite que j\u00e1 ia meio alta, tornando ao escrit\u00f3rio em que costumeiramente ficava lendo ou escrevendo, viu-a mais \u00e0 sua direita pousadamente posta em sossego. Apenas avan\u00e7ou alguns passos l\u00e1 dela, quando ele acomodou-se devidamente \u00e0 mesa.
\nN\u00e3o era outra mosca azul, n\u00e3o obstante lhe tivesse vindo imediatamente o epis\u00f3dio com aquela. Incr\u00edvel. Tratava-se de uma mutuca. Olhos grandes como aqueles. Mas feia, fosca, nada azul. Nunca mais vira essa mosca. Ficou mirando-a entre embevecido e saudoso. Fora arrebatado pelos seus tempos de banhos em rios, de currais com gado e cavalos, o habitat dela. Por ali zumbem. E a f\u00eameas, granadas, ferroam do\u00eddo animais ou gente sugando o sangue.
\nInseto de conviv\u00eancia de seu universo de inf\u00e2ncia e adolesc\u00eancia. De repente ali em sua mesa de homem maduro e j\u00e1 andado. Quieta. Est\u00e1tica. E de uma calma familiar surpreendente. Ali completamente im\u00f3vel, durante muito tempo depois que ele se abancara de novo \u00e0 mesa. N\u00e3o a movera o instinto do cheiro de sangue pr\u00f3ximo. Madrugada em curso, ela ali im\u00f3vel. Em verdade adiantara-se um pouquinho mais sob as proximidades de uma folha de jornal soerguida, como se a incomodasse muita luz. Como somente as f\u00eameas s\u00e3o hemat\u00f3fagos, por certo devia tratar-se de um esp\u00e9cime macho.
\nDeixou-a ficar tal como estava. Cerrou janelas e porta. Foi dormir. De manh\u00e3 ao descerrar tudo para permitir que o ar fizesse companhia \u00e0 luz do dia que as vidra\u00e7as transpusera, encontrou-a na mesma intacta postura. Mas, tal qual a mosca azul daquela vez, tratava-se t\u00e3o-somente de uma mutuca-cad\u00e1ver.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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