Data 19\/mar\u00e7o\/2004<\/span><\/td>\n<\/tr>\n<\/tbody>\n<\/table>\n
\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0Fora um menino de seus gatos. Sempre os teve. Vidas acumpliciadas. Era not\u00f3rio o apego m\u00fatuo. Era vis\u00edvel a obedi\u00eancia felina a ele. Um estalar de dedo. Um miado que apenas ele sabia produzir. As modula\u00e7\u00f5es, certas entona\u00e7\u00f5es de voz. E o gato vinha. E o gato ali, ao seu lado, com ele ficava. Ora sentado em sua posi\u00e7\u00e3o cl\u00e1ssica de felino em contempla\u00e7\u00e3o a dimensionar sua circunst\u00e2ncia. Ora ro\u00e7agando-se nele em car\u00edcias. Ora espregui\u00e7ando em seu colo ou a seu lado quando deitados num lugar do quintal, num c\u00f4modo da casa. \nE quando a hora de dormir chegava, n\u00e3o havia questionamento, iam para a cama. Ora juntos. Ora ele o esperava. Ora o gato j\u00e1 l\u00e1 estava esperando-o. Ele aconchegava o gato ao peito. Rosto com rosto. O dedo polegar na boca (h\u00e1bito ainda mantido na hora do sono). O resbunar do gato no sono, o seu acalanto. \nA casa, at\u00e9 prova de palavra abalizada do contr\u00e1rio, ficava apreensiva, que diziam que aquela asma de gato passava. E deu-se que o menino foi diagnosticado um dia com bronquite. Fora levado ao m\u00e9dico, que por d\u00e1 c\u00e1 aquela palha gripava. De entupir tudo: nariz, garganta. Tosse comprida, falta de ar. Pronto! Era a asma do gato pega! \nN\u00e3o era. Dissera o m\u00e9dico que o perigo de transmiss\u00e3o de doen\u00e7as do gato eram outras. Ent\u00e3o o apaziguamento reassentou-se. Gato e menino em seu conluio de companheiros insepar\u00e1veis. A casa desassustada. Ao gato era permitida a cama at\u00e9 que o sono pegasse o menino. Ent\u00e3o, era conduzido ao seu canto no ch\u00e3o, mas n\u00e3o muito distante do companheiro. \nOs gatos. Sutis fel\u00eddeos ensimesmados. Soturnos. \u00c9 peremptoriamente melanc\u00f3lica a fisionomia de gato. Imut\u00e1vel. \u00danica. Como se previamente fora feito modeladamente desse jeito e seu criador num sopro lhe ordenasse anda! V\u00e1 \u00e0 vida humana e nela se introduza e com ela conviva, assim, de cara \u00fanica. \nGato ao rato. Gato ao furto. Gato aos imortais saltos. Gato a sofisticados tratos. Gato para a express\u00e3o frase-feita como um ditado de uso de h\u00e1bito. Gato para couro de tamborim. Gato para churrasquinho barato. Gato solit\u00e1rio a que nada \u00e9 obst\u00e1culo. A tudo galga, transp\u00f5e com seus mortais saltos. Gato absolutamente sorumb\u00e1tico, mal mia ao reclamar por seus espa\u00e7os. Gato, entanto, como se tresloucado, quando acometido de seu cio: puramente gritos desesperados. \nJovem, indignado com os maltratos dos mandon\u00e1rios militares; ultrajado pelos mesmos em seus diretos de liberdade e privacidade; engajado na descoberta de que o homem \u00e9 que se faz o maior predador do homem, passou a adormecer recostado em Marx, em L\u00eanin, em Graciliano, em Drummond, em Maiakovski. A tempestiva ansiedade de salvar o mundo, o homem exaltando Cristo, estampando Guevara. \nMas a bonan\u00e7a lhe devolveu os animais dom\u00e9sticos. Os gatos. A eleg\u00e2ncia e a placidez de Tium preto e de Tium rajado. Senhores de seus muros, das suas \u00e1rvores, dos seus telhados. Vivia recomendando-lhes pouparem em sua ca\u00e7a os dois bem-te-vis dali. Os papa-ventos \u00e0s vezes eram surpreendidos e em v\u00e3o corriam, desesperadamente, muro afora. \nTium preto n\u00e3o apareceu um dia. Nem no outro. Nunca mais. E dia desses, um domingo, pausara a leitura de jornal, que \u00e0 sombra de seu quintal fazia, para ficar contemplando a eleg\u00e2ncia de Tium rajado como que desfilando pelo muro, feito meio guardi\u00e3o, meio modelo. \nE viu que, s\u00fabito, segundos, parou e desabou como fruta passada do alto do galho. No ch\u00e3o, jazia definitivamente mudo.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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