{"id":70,"date":"2005-04-15T17:51:25","date_gmt":"2005-04-15T17:51:25","guid":{"rendered":"http:\/\/poetagem.com.br\/?p=70"},"modified":"2016-09-23T17:52:04","modified_gmt":"2016-09-23T17:52:04","slug":"jumento","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/poetagem.com.br\/2005\/04\/15\/jumento\/","title":{"rendered":"Jumento"},"content":{"rendered":"\n\n\n
Data <\/span>15\/Abr\/2005<\/span><\/span><\/td>\n<\/tr>\n<\/tbody>\n<\/table>\n

\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0Imposs\u00edvel n\u00e3o ouvir o seu relincho. Um rel\u00f3gio na emiss\u00e3o de seus zurros. Ali, em plena cidade, diuturnamente, nos mesmos per\u00edodos de tempo, um jumento zurra para estranheza, surpresa, saudosismo de alguns citadinos, como ele, daqueles pr\u00f3ximos bairros ao ponto (que desconhecia completamente) em que aquele jegue residia.
\nO jumento que n\u00e3o \u00e9 cavalo, mas que dele muito tem e dele muito se afasta. O relincho de cavalo qualquer \u00e9 naturalmente belo. Seja qual relincho for \u2013 por amor, por rancor, por temor, por destemor.
\nUm cavalo ou \u00e9gua baia, alaz\u00e3, soberbos no meio do pasto. Pesco\u00e7o altivo, donde soltas crinas crespas evolam-se ao vento. Rabo arqueado no qual tamb\u00e9m crinas iguais balou\u00e7am. E seus soberbos relinchos. A campear a cria perdida. A implorar a f\u00eamea preferida. A enxotar inimigos do seus espa\u00e7o. A impacientar-se ante an\u00fancios de fortes temporais.
\nCavalo ou \u00e9gua equipados a rigor. P\u00ealo em brilho de alimenta\u00e7\u00e3o apropriada e escova\u00e7\u00e3o peri\u00f3dica. Traia das mais agradavelmente adequadas. Freio leve em a\u00e7o. Tal a montaria bonita em seu elegante compasso de marcha. Marcha a que nenhuma se compara.
\nSim, o jumento. Que poucas vezes vira. Por certo porque em seu mundo valia o cavalo. Era ali, fora aos poucos percebendo, de nenhuma serventia aquele burrinho pardacento; impr\u00f3pria montaria para as lides daquelas paragens. Por que um que outro criador possu\u00eda tamb\u00e9m um jumento? Soubera que por ali existia com a privilegiada (decerto ele mesmo n\u00e3o se dava conta disso) condi\u00e7\u00e3o de ser reprodutor.
\nUm burro, uma mula, de pai ou m\u00e3e jumentos destes n\u00e3o herdam o porte. Justamente o que a seus propriet\u00e1rios apraz. Mas decerto trazem dele um f\u00f4lego e for\u00e7a tamanhos que noutros eq\u00fc\u00eddeos n\u00e3o s\u00e3o. E de sua m\u00e3es \u00e9gua, ou de seu pai cavalo trazem tamb\u00e9m o porte.
\nO espectro de uma \u00e9gua alaz\u00e3, tordilha, negra, mansa, a passear, enquanto pasta; enquanto espia o vago, o horizonte. Crinas soltas. Ancas magn\u00edficas esplendentes numa aurora; esfusiantes num p\u00f4r-de-sol; ardorosas numa noite estelar de lua plena. Uma \u00e9gua de cujo parto pode um burro, uma mula.
\nN\u00e3o traz o burro do cavalo a garbosa eleg\u00e2ncia esf\u00edngica. N\u00e3o traz a marcha ecl\u00e9tica e marcial de patas, pernas e coxas desenhando em cont\u00ednuo, no espa\u00e7o, imagens de engrenagens cuja mobilidade seduz, atrai, prende. N\u00e3o traz o burro no seu galope as convexas-c\u00f4ncavas curvaturas magistrais que se v\u00e3o sucedendo no ar de vivo pasto, transfigurando-se num espectro multicor. Tampouco uma mula traz de uma \u00e9gua estas semelhantes proezas.
\nN\u00e3o. Um burro, uma mula s\u00e3o turr\u00f5es. V\u00e3o devagar, s\u00e3o de vagar. S\u00e3o duros de andar. S\u00e3o de andar duro. Trotam. Rude postura de cabe\u00e7a baixa, de silhuetas retil\u00edneas. Cores opacas e esmaecidas.
\nTodavia, o porte mediano, as canelas finas, a paciente cavalgadura, atestam homens que com gado, cavalo, \u00e9gua, burro, mula tanto conviveram e convivem, s\u00e3o caracteres de animais incompar\u00e1veis em resist\u00eancia e sabedoria. Um burro sabe a hora da travessia. Uma mula sabe ser das mais finas e seguras montarias. O magistral conto \u201cO burrinho pedr\u00eas\u201d de Jo\u00e3o Guimar\u00e3es Rosa; a antol\u00f3gica can\u00e7\u00e3o caipira \u201cModa da mula preta\u201d de Torres e Flor\u00eancio s\u00e3o dois comprovantes irrefut\u00e1veis.
\nV\u00eam do jumento decerto esses caracteres manifestos pelos filhos, que se prestaram a servir com presteza e vantagens, em alguns casos, mais e melhor do que quaisquer outras montarias.
\nDo Evangelho se depreende que o jumento por duas vezes teve a honrosa fa\u00e7anha de servir a Jesus Cristo. Uma levando, no lombo, Maria com ele a fugirem dos herodes. Outra, tamb\u00e9m em seu lombo, levando Jesus que em Jerusal\u00e9m entrava.
\nNo Nordeste \u00e9 que, mais que noutro lugar qualquer, se constata essa sabedoria e resist\u00eancia jegue. Nordestino matuto que se preze, ao lado de uma cabra e um bode tem o seu jumento que a tudo pode. Tanto \u00e9 certo que Luiz Gonzaga, em parceria com Jos\u00e9 Clementino, comp\u00f4s, cantou e incluiu em sua antologia principal \u2013 \u201cLuiz Gonzaga, 50 anos de ch\u00e3o\u201d a can\u00e7\u00e3o que lhe fizeram em homenagem: \u201cApologia ao jumento (O jumento \u00e9 nosso irm\u00e3o)\u201d.
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