{"id":279,"date":"2004-03-05T00:13:16","date_gmt":"2004-03-05T00:13:16","guid":{"rendered":"http:\/\/poetagem.com.br\/?p=279"},"modified":"2016-09-24T00:13:57","modified_gmt":"2016-09-24T00:13:57","slug":"homessa","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/poetagem.com.br\/2004\/03\/05\/homessa\/","title":{"rendered":"Homessa"},"content":{"rendered":"\n\n\n
Data 05\/mar\u00e7o\/2004<\/span><\/td>\n<\/tr>\n<\/tbody>\n<\/table>\n

\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0A severidade dele. Homem cuja fisionomia estampava um fleum\u00e1tico prestes a expoldir-se em vitup\u00e9rios crivados de lancinantes palavras cutelares, palavras demolidoras. Os olhos esbugalhando sua indigna\u00e7\u00e3o incontida e rebentada. O nariz grosso e apimentado, de certo irritadi\u00e7o com o respons\u00e1vel por tamanha provoca\u00e7\u00e3o a seu dono. Este o senhor Ant\u00f4nio que lhe diziam ser e que nunca vira.
\nO que sempre vira foi um fleum\u00e1tico, sim, por\u00e9m am\u00e1vel e ecl\u00e9tico dirigente escolar daquele educand\u00e1rio. Afamado homem bravo, conforme a vers\u00e3o dominante na escola. Talvez fosse uma conduta de forma programada, previamente pensada por Ant\u00f4nio, para, na presen\u00e7a dele, n\u00e3o se permitir ser aquele afamado vulc\u00e3o. Fato logo notado e resultante de longas conversas na escola.
\nMas o tempo de conviv\u00eancia demonstrou n\u00e3o ser verdadeiramente, por uma raz\u00e3o pessoal qualquer, l\u00e1 dele, uma posi\u00e7\u00e3o, se n\u00e3o concreta, sem simula\u00e7\u00f5es e disfarces. Seu procedimento em rela\u00e7\u00e3o a ele era de fato espont\u00e2neo. Conversa solta. Express\u00f5es brincalhonas e ironias. Muitos de seus coment\u00e1rios e observa\u00e7\u00f5es argutas quase sempre se faziam em tom ir\u00f4nico ou zombeteiro e acompanhado de estridulante gargalhada provinda de uma face enrubescida com o que dissera.
\nAnt\u00f4nio apreciava com ele travar, de forma acalorada, breves discuss\u00f5es a respeito de diversos temas, desde educa\u00e7\u00e3o a pol\u00edtica, sua paix\u00e3o. Discuss\u00f5es que o punham em estado vultuoso. No extremo de sua veem\u00eancia, parecia estar sendo acometido de uma apoplexia. Todavia, assim, felizmente, n\u00e3o era. Na mesma velocidade com que abeirava aquele estado, tornava ao normal. E o que parecia uma f\u00faria devastadora, reequilibrava-se. A calmaria de um homem soturno ouvinte paciencioso, semblante indevass\u00e1vel a perscrutar confrontadamente o interlocutor. Talvez a isso se devesse outra hist\u00f3ria a seu respeito, conforme a qual as pessoas em sua presen\u00e7a, ao expor-lhe algo, ficavam aflitas, apreensivas, temerosas, desconcertadas, ante aquele olhar azul fixo, penetrante, enigm\u00e1tico em completo emudecimento, ouvindo, ouvindo. O mediano corpo robusto, propendendo a gordo, parecia ainda mais crescer. Depois pausada e laconicamente mais sentenciava que replicava.
\nEmbora n\u00e3o quisesse descrer daquela corrente hist\u00f3ria e porque fosse conhecedor da outra face de Ant\u00f4nio, mais o compreendia. Tratava-se de uma denunciada e cr\u00f4nica misantropia. Ant\u00f4nio muito pouco entregava de si e a muito menos pessoas ainda. Certamente devia ter controlad\u00edssimo pavor do p\u00fablico, ao qual jamais permitira bisbilhotar o seu \u00edntimo. Com ele abria-se. Tratava com rigidez e radical regramento o \u00fanico filho e a mulher. (Outra hist\u00f3ria: castigava perversamente a ambos.)
\nAnt\u00f4nio era comunista radical. Mais do que isso, stalinista devoto. Eis quando mais assustava a possibilidade da concre\u00e7\u00e3o da apoplexia. Abominava, numa loquaz orat\u00f3ria viperina, os fascistas e nazistas expoliadores do povo. Ant\u00f4nio dedicava-se \u00e0 astronomia. Contava-lhe fatos e fatos. O cosmos, os astros, os eclipses, o misterioso e instigante universo o fascinavam.
\nTivera com ele um singular conv\u00edvio. Cria ter sido \u00fatil durante esse per\u00edodo \u00e0 exist\u00eancia de Ant\u00f4nio, que singular e quase unicamente (somente outro amigo dispensava-lhe o mesmo tratamento) o chamava de Chico.
\nDepois ele se foi daquela escola. Rarearam seus contatos: encontros espor\u00e1dicos, casuais.
\nDepois soube que Ant\u00f4nio havia se mudado para outra cidade, o que o fez olvid\u00e1-lo quase por completo.
\nPor fim, chegou-lhe a not\u00edcia ruim de que Ant\u00f4nio se suicidara com um tiro de rev\u00f3lver no peito. (Justamente ele que detestava Get\u00falio Vargas.)<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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