Data <\/span>10\/dez\/2004<\/span><\/span><\/td>\n<\/tr>\n<\/tbody>\n<\/table>\n
\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0Ao telefone identificou-se de forma perempt\u00f3ria. Decerto para que a mem\u00f3ria fosse poupada na busca. Pois o tempo de absoluta aus\u00eancia (e talvez de esquecimento) entre ambos fora como um para sempre. \nSurpreso, ele expressou satisfa\u00e7\u00e3o por novamente sab\u00ea-lo. O outro pedia um encontro. Al\u00e9m de rev\u00ea-lo, iria solicitar-lhe alguns pr\u00e9stimos para cujo desempenho a fun\u00e7\u00e3o profissional que exercia certamente o habilitava. \nD\u00e9cadas passadas. Ele cumpria o dia em trabalho como organizador do burocr\u00e1tico-pedag\u00f3gico no departamento em cujo curso o outro lecionava. \u00c0 noite aconteciam as aulas. Cursos noturnos. Nos quais, filhos das classes m\u00e9dio-baixas predominavam. Alternativa a que se agarravam para estudar. Era ainda a possibilidade de romper o c\u00edrculo de pobreza a que pertenciam. \nDessem-se por satisfeitos. Era o que a Funda\u00e7\u00e3o Educacional do munic\u00edpio oferecia: Faculdade de Filosofia, Ci\u00eancias e Letras. A op\u00e7\u00e3o restringia-se apenas quanto ao curso a escolher. \nAli se conheceram. Ali atuaram juntos. Mais que na condi\u00e7\u00e3o de professor e aluno. Juntamente com alguns outros discutiam o Pa\u00eds. Pensavam o Pa\u00eds. Examinavam e refletiam o Pa\u00eds sob o jugo da ditadura militar que mais lhe fora fechando o cerco ano a ano. Viveram ali, assim, os anos mais opresssivos. Quando ent\u00e3o, por d\u00e1 c\u00e1 aquela palha, o regime totalit\u00e1rio impiedosamente metia a navalha. \nNos fins das noites e madrugadas entrantes, nos botecos, teciam conjecturas em variadas, acirradas, prudentes, mas tamb\u00e9m ridentes conversas. Acompanhadas, n\u00e3o h\u00e1 d\u00favidas, de muita cerveja principalmente. N\u00e3o exclusivamente. \nMenos se conspirava contra o monstro devorador do que se cogitava sobre sua trucul\u00eancia e burrice. Passagens que o punham ao rid\u00edculo enumeravam-se. Desde apreender o romance Seara vermelha de Jorge Amado a exigir, nos tais dias c\u00edvicos, que n\u00e3o eram poucos, a montagem do \u201caltar da p\u00e1tria\u201d. Uma geringon\u00e7a erigida em local p\u00fablico excessivamente decorada de verde e amarelo, onde revezavam-se estudantes, jovens que serviam ao ex\u00e9rcito e professores. Ali se postavam em posi\u00e7\u00e3o de sentido, guardando o nada, onde uma bandeira nacional jazia. Eram cenas rid\u00edculas e dolorosamente consternadoras. \nVeio a vez de eles serem chamados \u00e0s falas. Afinal, deviam saber que seguiam seus passos sem descuidos. Deles tinham ficha detalhada. Informa\u00e7\u00f5es as mais precisas. Era uma quest\u00e3o de tempo, hora e vez. \nEnt\u00e3o cada qual teve o seu tempo, sua vez, sua hora. O amigo que ora o visitava fora o primeiro. Um pouco bem depois, soara a hora dele e de alguns outros. Todos enquadrados como evidentes incomodadores da ordem e do bem-estar social. Agitavam e subvertiam a ordem na sala de aula, nos encontros estudantis, em publica\u00e7\u00f5es e nas madrugadas de boteco. \nAprisionamento. Confinamento. Incomunicabilidade. Comida insossa, temperada a salitre. Cela opressa. Por\u00f5es \u00famidos tornados celas. Sess\u00f5es de torturas. Acarea\u00e7\u00f5es. Depois solturas condicionais. Pris\u00e3o domiciliar. Alguns buscaram o desconforto-conforto do ex\u00edlio. Vieram os julgamentos. As consuma\u00e7\u00f5es de pris\u00f5es ou solturas definitivas. \nMuito depois, veio a derrocada da ditadura. E veio o processo de restabelecimento da democracia. E veio a anistia. E vieram os exilados. Agora se discutia o fazer, ou n\u00e3o fazer vir \u00e0 tona todos os atos obscuros, vetados, esp\u00farios praticados pelo regime ditatorial militar. Inclusive a chamada repara\u00e7\u00e3o de danos e perdas de forma indenizat\u00f3ria por pec\u00fania. \nEm liberdade condicional, ele escapara para o ex\u00edlio. Anistiado, tornou ao Brasil. No Brasil, restabeleceu sua atividade profissional e, depois, se aposentou. Promulgada a lei concess\u00f3ria, p\u00f4s-se \u00e0 busca do resgate do que considerava suas perdas e danos. Da\u00ed o reencontro, agora, algumas d\u00e9cadas depois. \nEnt\u00e3o, encontrados, regozijados, rememorados, teve um momento de profundo sil\u00eancio. O anfitri\u00e3o, meio sem compreender, respeitara o sil\u00eancio. O visitante, face vultuosa, olhos lacrimejantes, disse que lhe do\u00eda muito ainda aquilo e que precisava confess\u00e1-lo: sob a dor indescrit\u00edvel da tortura acabara sendo um dos grandes respons\u00e1veis pela pris\u00e3o do amigo. \nDepois de outro sil\u00eancio e compreendendo a express\u00e3o de absoluta compreens\u00e3o do amigo, disse j\u00e1 se sentir bem, leve e liberto daquele torturante sentimento de culpa.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
Acerto Data 10\/dez\/2004 \u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0Ao telefone identificou-se de forma perempt\u00f3ria. Decerto para que a mem\u00f3ria fosse poupada na busca. Pois o tempo de absoluta aus\u00eancia (e talvez de esquecimento) entre ambos fora como um para sempre. Surpreso, ele expressou satisfa\u00e7\u00e3o por novamente sab\u00ea-lo. O outro pedia um encontro. Al\u00e9m de rev\u00ea-lo, iria solicitar-lhe alguns pr\u00e9stimos para […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[17],"tags":[105],"yoast_head":"\n