Páscoa

Data 28/mar/2005

     Não se tratava de estar depressiva. Não era a sua condição e situação de vida que lhe doía. Os achaques cotidianos a afetavam de conformidade com o aceitável. De conformidade com a margem de pequenos, esperáveis e incomodativos contratempos. Todavia, nenhum grande infortúnio. Nenhuma profunda ulceração de alma. Pacata rotina, bom marido, queridos filhos, emprego bem visto, salário modesto, porém significativamente longe do aviltante mínimo.
Aturdia-a de fato com freqüência as degenerescências socioatávicas em que vive condicionada a natureza humana. Por que se encaminhava a humanidade para isso? Avidamente viva, a ciência prossegue na sua perscrutação incansável dos astros próximos. E vão descobrindo estarem todos estéreis. Para o que parece encaminhar-se a Terra. Tanto lhe arrancam das entranhas. Tanta a putrefação que lhe entranham. Tantos os abates que a desgastam; que a devassam.
Prostrava-a a inapetência humana para o desprendimento (Era ver o bichos). A obsessão pelo empreendimento incapaz de tão-somente edificar, sem danificar. Tanto tempo custa à terra acabar uma árvore, aprontar uma mata, enquadrar os rios, fundear seus mares, distribuir seus animais, equilibrar seu ecossistema.
Todavia, o invento humano produz uma motosserra que a um jequitibá põe em terra em minutos; o engenho humano resulta certos dejetos que empestam peixes pássaros e os sucumbem em minutos; o invento humano produz certos produtos químicos que esterilizam o em que lhe aplicam por todo o sempre. A inata belicosidade humana germina assombrosas armas para extermínio de tudo, inclusive gente.
Acabara de percorrer os jornais do dia. A sucessividade cotidiana de catástrofes dá-se tão rápida, que se tornou um hábito com elas conviver. Matar e morrer tornou-se, não uma remota probabilidade, um fato, um ato a que ninguém escapa, tanto quando for e quando não for o caso.
Aturdiu-a aquela recente rebelião de Febem e seus degradadores desfechos. Particularmente os estupros de duas mulheres funcionárias com a função de psicóloga e educadora. Atuavam ali com o propósito de formar ou reeducar aqueles rapazes, os quais as estupraram. Esse um dos grandes riscos. O inquestionável dom da feminilidade não descaracteriza a condição de fêmea, que, por mais não queira, transpira sensualidade.
A iniqüidades. Ela ali no seu canto com seu sentimento de impotência, padecendo sua inútil dor de mundo. Temia (profundamente) muito pelo porvir. Todavia, talvez tudo não passasse de excessivas apreensões de uma mulher romântica e ingênua. Teimosamente recusando-se a aceitar as coisas como são.
Súbito, trazendo-a de volta à vida que pulsava ruidosamente pelas salas de aula, pelo pátio, pelas ruas que circundavam a escola, estacou-se ante a soleira de sua sala uma aluna, pedindo-lhe licença para entrar. Autorizada, a garotinha irrompeu até à sua mesa. Assacou de uma pequena sacola um objeto feito de papel vermelho, brilhoso, laminado, num formato que significava ser um bombom cujo embrulho conotava um miniovo de Páscoa.
Ela lho entregou, dizendo feliz Páscoa pra senhora. Recebeu agradecida, pregando-lhe um beijo, emocionada. E ficou ali por instantes em pé mesmo, o presente mínimo amparado pelas duas mãos em concha. Ficou ali observando aquele futuro repleto de viva vida presente e, certamente, de confiante esperança, ir-se cheia de si, senhora de seu destino.

 

Trajeito

Data 18/mar/2005

     É de muitos antanhos que a roupa serve ao homem. Serve-o menos em proteção. Mais, muito mais em representação. Ao vestir-se o homem se despe da condição de pura natureza. Atesta sua sobrelevação aos seres demais. Com a roupa acoberta seu estado animal. Seu pêlo e couro passam a pele, epiderme.
Talvez, a princípio, a descoberta dela fez-se por necessidade. Aprendeu o ancestral que o couro do bicho de que se alimentava dar-lhe-ia ao corpo proteção. Quanto mais foi engendrando outros recursos mais eficazes para esse fim, mais destinava à roupa a função de ornamento.
Então, ao vestir-se o homem despe-se de sujeito natural. Veste-se de sujeito social e, enquanto assim, é um permanente e dinâmico multissigno vagante. Por mais que não se dê conta, embora quase sempre o dê, ele pronuncia-se por suas roupas, seus trajes.
A evolução do traje tramita por larga, complexa e longa história. Nada no traje é indiferença e gratuidade. Aos escravos cabiam roupas rudes e grossas, cujos desgastes demandavam extensas durabilidades. Bastava cobrir-lhes algumas inevitáveis partes. Desnecessário que os pés calçassem. Que a cabeça cobrissem. Bobagem. Dinheiro a mais na algibeira. Escravo negro tinha carapinha e couro à prova de sol e friagem.
Às majestades, aos nobres, aos bispos, papa e padres se reservavam farta roupa, fina roupa, as quais, emblemáticas, pronunciavam uns rituais altivos, dados aos desígnios dos bem-aventurados por Deus-pai, Deus-filho, Deus-espírito santo.
Os trajes enunciando as senhoras madames sobre cujas finezas, sobre cujas delicadezas, sobre cuja tez acomodavam-se cambraias e sedas, ouro e pérolas, pelicas e cromos – solertes mulheres a ostentar e acobertar seus senhores.
As eternas mulheres damas. Prontas. Nunca em aparências inferiores àquelas. Sempre dóceis e amáveis. Trajes leves, livres daqueles arredondados armados até os pés. Vaporosas, resguardando-se de indecorosas. Sensuais transparências insinuantes. O bastante para que aqueles maridos acorressem a seus requisitados e insubstituíveis serviços.
Havia, sim, o seu contraponto. Onde os trajes menores atestavam a lida com a menoridade social. Ao contrário daquelas suas próximas, eram tidas e havidas por putas da zona do meretrício. Andavam seminuas, bêbadas. Quase sempre por desilusões amorosas, maus tratos, abusos. Putas mal pagas e sujeitas a toda ordem de sacanagem. Cadelas dadas a matilhas de perdidos e mal-amados.
Sim, parece definitivo. É vestindo-se que homens e mulheres se despem. Atraem-se mutuamente os pássaros por seus trinados. Os pirilampos por suas lanternas. Alguns animais por seus urros e berros. Outros por especiais cheiros. O que não procede entre homens e mulheres. Dos múltiplos fatores de atração entre si, o traje está entre os principais.
Todavia, o traje entre os homens faz muito mais que atrair. Traça status. Demarca tribos. Etiqueta estados. Pronuncia ideologias. Delimita categorias. Há o terno, terno traje dos que se fazem eternos nos comandos de poder. Indumentária magna a denotar os eternos comanditários de sua sociedade-brasil. Tanto que, ao ter alçado a escala, a farda deu lugar ao terno.
A indumentária de gala a que se submetem homens e mulheres, porque assim prescreve o figurino para aquela figuração. Os trajes peculiares com os quais cada nação se estabelece; com os quais cada região se singulariza. Os trajes irreverentes e moleques permanentemente mutáveis da eterna juventude avessa aos ternos, às togas, aos tules e longos. Vão com seus percings, suas tatuagens, suas exóticas estampas.
E há os trajes dos incuravelmente trágicos; os trajes dos definitivamente sádicos; os trajes dos irremediavelmente frágeis; os trajes que põem a todos ávidos; os trajes que se tornaram por todo o sempre hábitos. E os trajes que ostensiva e propositadamente são ultrajes.

Rex

Data 11/mar/2005

     Uma sua dobermann, certa feita, afabilíssima com todos da família, súbito, surgiu, boca espumada, cambeteando. Os olhos em brasa. E de imediato pôs-se a se debater, tremendo, como se sob o efeito de um alucinógeno. E não era menos
O experiente veterinário que do habitat da cadela bem sabia diagnosticou e rapidamente pôs-se a lhe aplicar o antídoto, antes que fosse sem tempo. Ela havia, seguramente, mordido um sapo, que, agredido, expelira seu veneno provocando aquela quase tragédia. Fatal, se ao veneno não se tivesse dado cabo.
Sob a ação do medicamento, ela remansara num desfalecimento restaurador, com que certamente, recobrara as energias de uma cadela vigorosa, indômita, agressiva e carinhosa.
Não fora essa a única vez. Houvera duas outras. Teimosa, cabeça estreita, repetira o deslize. Por isso, vivia-se a rastrear o quintal, como se à procura de minas devastadoras: sapos. Todavia, por mais precauções que se tomasse, sempre encontravam eles uma fresta pela qual transpunham-se da rua para o quintal. Por mais que fossem removidos para lugar certo de que não retornariam, o quintal continha sapos.
Havia outros cães na casa. Que, entretanto, não se indispunham contra eles. Decerto, no princípio, feito o reconhecimento, deram-nos por inofensivos, não-inimigos. Logo, que transitassem, passassem à larga. O que não admitia o impulsivo temperamento da sua dobermann.
Mas, enfim, não foram os sapos que a mataram. Dos venenos deles fora a tempo devidamente livre. O que não puderam fazer contra o câncer de mama que lhe foi tomando, lhe imprimindo sofrimentos inestancáveis até a morte. Quando ele passara quase toda a noite em claro a apascentá-la.
Os sapos ficaram. Em vão removê-los. Mas matá-los, nunca. Vinham decerto atraídos por um quintal benfazejo. Recanto aprazível, saudável de insetos. Não se podia admitir que acontecesse uma invasão. Eram não mais que cinco ou seis deles. O quintal os comportava. Disistira da remoção inútil. Apenas a redirecionara. Não os deixava permanecerem no avarandado. Eles insistiam. Súbito eram encontrados dentro dos bebedouros do cães. Refestelados à fresca da água. Levava-os para o quintal. Passados alguns dias, a cena se renovava. Eles foram ficando. Menos insistentes.
Em certas ocasiões, que a natureza deles sabe por quê, punham-se a coaxar. Punham-se a cantarolar. Dizem porque chamam chuva. Porque o sapo cururu da beira do rio, sente frio (embora o calor imenso). E quando se prestam a esse destino, são comedidamente pontuais. Tamborilam seu canto feito cigarras fossem, de tão persistentes. Tal que acontecera de passar a ouvir esse marimbar canoro ao pé de seu escritório dias e dias.
Ilusão auditiva? Decerto o canto de um canto do quintal percutia nalgum ponto do cômodo ricocheteando ao seu ouvido. Comentara o fato em mais de uma ocasião em que todos passavam juntos. Ninguém parecia dar importância ao que, certamente, consideravam algo banal. Mas vira, num lampejo de disfarce, furtarem-se os olhos do filho mais novo. Mas soubera também, naqueles efêmeros segundos de olhares instantaneamente trocados, que o filho percebera ter sido pego em ato oblíquo.
A constância fê-lo descobrir. Tratava-se de um sapo dentro do cano escoador de água da chuva subterrâneo ao piso de seu escritório. Decidiu não retirá-lo. Que ficasse. Aquele canto inconstante, certas manhãs e tardes, tinha um tom de acalanto. Por certo para alívio do filho que, embora nada dissesse, parecia ter idêntica opinião.
Eis que, numa noite já andada, dera-se com um sapo farto dentro da vasilha de ração dos cães. Seria possível? Era. Retirou-o. Tomou de alguns grãos e atirava-os a ele que, como aos besouros, apanhava-os com sua elástica língua relâmpago.
Então aquele sapo ficou sendo o Rex. E toda noite se queria saber se Rex já tinha ou não chegado. E toda noite Rex chegava para aqueles besouros certos e fáceis.

Vacilão

Data 04/mar/2005

     Vira-se mais de uma vez explodir. Um enfarto. Um derrame. Tantas foram as angústias. A dor de mãe/avó, cordata e impotente. Além de mulher, as forças debilitadas por crônicas doenças instauradas pela velhice.
Pobre filha. Por que fora capaz de submeter-se a uma condição danosa assim. Infância tão feliz. Que ainda desfrutara dos encantos das brincadeiras e cantigas de roda. Na escola. Nas esquinas com as meninas. As famílias na calçada curtindo a noite calorenta. Gozando o luzeiro das estrelas. O remanso da lua mínima, das luas intermédias, da lua máxima.
Dormia seu sono santo. Com o acalanto dos beijos e as recomendações aos anjos. Ia assim rompendo, etapa por etapa, a formação de donzela zelosa de seus atributos e dotada dos predicados apropriados a prenda com pouco pronta aos cortejos, aos insinuados desejos. Prenda a ser digna de conquista. Exposta e resguardada como um bem a se possuir, tendo-se em conta um conjunto de valores certificáveis.
Filha de berço. A mais completa expressão então em moda com que se qualificava uma formosa e recatada mulher. Orgulho de pais presentes durante toda a trajetória daquela rosa ou magnólia, desde a fralda à saia de roda. Cuidados tantos tão poucos para o fim destinado: o esplendor em sua forma vigorosa disposta ao seguimento da vida.
Durante, feito toda mãe, fora pretendendo algures para uma filha assim esmerada. Sonhava-lhe passarelas. Que não lhe fosse o mundo o das cinderelas, todavia bem-aventurosa na sua porção maior, que faria por tê-la merecida: colhe, quem planta.
Elucubrações de mãe prestimosa estabelecem horizontes povoados de benfazeja vida. Cujo dom nada inveja situações nirvânicas. Não que mãos beijadas fomentem tais virtualidades. Entretanto, que não lhe pesasse demais o fardo fatal da existência.
Qual. Pouco é ainda o máximo empenhado pela consecução de tais benesses. Feita, inteiriça de vida, à flor cabe a decisão de suas negativas, relutâncias e entregas. E pode dar-se também que seu dom não considere tamanha tributação berçária empreendida, para que o ideário de mãe, que se demonstrou, não passasse de um imaginário subsumido.
Qual. O arrocho forjado pelos apelos da insensível condição humana talvez a tenha induzido a conduzir-se de modo precipitado. E foi montando em quantos cavalos passassem, atormentada por chegar ao porto seguro do bom pão e melhor vinho da vida garantidos.
Aterrissou nessa corporação cuja história vai crivada de heroísmos pouco percebidos e truculências muito vistas. Assentou praça. No roldão de profissão investida de conflitos e aflitos encontrou tempo de apaixonar-se por um mano. Logo, entre atos e beós casaram-se.
Euforia esfriada, a intolerância assumiu a truculência e os espancamentos externos estenderam-se para dentro do lar. Anos, década a fio o pó, o batom, a maquilagem acobertando os estragos. A mulher resistia. Havia os filhos. O afeto pelo pai.
Todavia, logo a bruteza passou a desconsiderá-los. E o espancamento estendeu-se a eles. Que manifestavam defesa à mãe. O pânico tomou-as. Ficaram meninos perturbados. Peça nova ao sofrimento geral.
Anos, anos, década indo assim. A mãe/avó no seu padecimento, debaixo de sérias ameaças, ante a desgraça desabada sobre filha e netos. Também a ela o terror continha. Havia a sentença de consumação da desgraça, caso buscasse abrir o fato com qualquer. Tanto ela quanto filha e netos.
Nunca havia presenciado os atos. Até aquele dia de imprevista ida à casa deles. Parecia um pandemônio. Súbito, deu-se consigo entremeando-se entre o carrasco e os espancados. E pela única vez levou um baita soco no rosto. Pois caiu exatamente ao lado do revólver dele pousado na mesinha de centro.