Data 20/out/2005 |
Então o bisneto, que em pequeno muita vez adormecera a sonhar no embalo das histórias narradas pela avó, cedeu às instâncias dos netos. Olhou bem dentro de cada par de olhos estendidos na poltrona e anunciou. Trata-se de uma história de pássaro. Longa história e interminável no tempo do pai de vocês criança. É a história da vida do gavião Pinhé-Pinhé. Garboso pássaro carnívoro que reinou absoluto por aqueles sítios campicitadinos. Atenção, meninos, lá vem Pinhé-Pinhé.
Num vôo rasante, magnificamente aterrorizador (eles britariam de espanto e ririam de medo), Pinhé-Pinhé aterrisou. Soberbo pássaro. Imponente por natureza. O garbo do porte, pouse onde pousar. Se no solo, se move feito aquelas donzelas em passarelas modelares. Vai em si por si mesmo. Não seduz. Impõe-se, que a fome tem pressa. Nada escapa aos seus olhos como aos de águia. Porque Pinhé-Pinhé também não é a águia lá do sertão. O carcará temível. Que, esse sim, mais da águia se aproxima: em porte, feição e feitos. Come cobra, quando há nada que se escolha. Ataca burrego, bezerro recém-nascido, se o descuido do sertanejo, nos pastos os deixa. Carcará é coragem e valentia, já o imortalizou a clássica canção com que nos agraciaram José Cândido e João do Vale.
Pinhé-Pinhé, todavia, não fica tanto atrás. Tem suas ousadias. Sua morada, seu habitat, as matas de pequenos sítios próximos à cidade. Onde campeia. Com estridente piado de quem se acha em guerra, Pinhé-Pinhé sobrevoa estes ares sempre pronto para súbitos ataques. Ai dos pintinhos pelos quintais, não obstante a não menos valentia da galinha-mãe: penas todas eriçadas, asas abertas, bico em riste, tenta investir em Pinhé-Pinhé. Não lhe dá de barato sua cria.
Os pássaros pequenos – pardais, pombas do tipo amargosa, sanhaços – apavorados se safam como podem. Os bem-te-vis, porém, que por aí residem, não só não se intimidam, como em Pinhé-Pinhé investem bicando-lhe o dorso. Porque menores, mais ágeis no espaço. E com seus agudos bicos molestam o doméstico gavião Pinhé-Pinhé.
Salvo, finalmente, por um galho protetor, Pinhé-Pinhé solta seu grito de guerra e raiva (Ai dos bem-te-vis: se os pega, espedaça-os!) E seus extraordinários olhos de super-homem espreitam todo o território. Quase impossível que presas não vejam. Decerto estuda-as sem que muitas não o percebam, não o pressintam. São as mais vulneráveis.
E, súbito, sem que nada se desse, quando tudo no quintal reinava em calma, sob o forte calor, Pinhé-Pinhé, vindo não se sabe exatamente de onde, ali desabou. Houve um reboliço de tatalar de asas e gritos de pássaros em aflição.
E espantado de incredulidade, o dono do quintal viu o predador debater-se, por instantes nos galhos de um pé-de-pinha, derrapar no chão de cimento e ir pousar num galho da goiabeira. Tudo num relance. Mas com ele nenhuma presa.
Verdade. Pinhé-Pinhé não abatera seu jantar. E se não houvesse engano, que a natureza apenas soubesse, o que o impediu foi, decerto, não contar com o pé-de-pinha no meio do caminho. Ou por não tê-lo dimensionado com a devida precisão, já que aquele ia em seca progressão.
Certo é que Pinhé-Pinhé achou o alto da goiabeira. Onde pousou decerto meio humilhado e cheio de ira. Cometer tal deslize por certo depunha contra a honradez dele próprio, sarado e garboso gavião. Ou fora um prenúncio, aviso primeiro de que a mocidade já o deixava e com ela iam as agilidades e espertezas?
No chão do quintal, viu-se que se debatia, desesperado um filhote de pomba. Era a presa perdida. O dono do quintal pegou-a. E constatou quebradura de pescoço. Estava completamente acabada em seu princípio de vida. Melhor e mais justo que Pinhé-Pinhé a abatesse logo, que agonizar no pó do chão e depois se servir aos vermes.
Decidiu, pois, depô-la em um galho de árvore claramente exposta ao gavião que continuava no alto da goiabeira. Moral abatida, embora não perdesse a pose. Em absoluto silêncio (não mais emitira seus pinhés-pinhés), mas atentíssimo.
E Pinhé-Pinhé veio. Por segundos, voando pairado no ar, ficou diante da avezinha jazida. E de repente alçou enorme vôo-de-embora, soltando seu pinhé-pinhé de guerra.
Os meninos se entreolharam. Depois, o avô. E o mais velho (em seguida repetido pelo mais novo): ah! vô! Conta direito a história.