Romance

A história da vida. A vida é história. A história são vidas. As vidas compõem a história. As histórias de vidas é que sustentam a vida na sua continuada descontinuidade a perpetuar-se em sua história.
E mais que contá-la, os homens, seu fundamental artífice, atuam na tessitura dos seus infindáveis e intrincados enredos. São seus personagens, cujas ações os fazem destacar-se ou anonimarem-se.
Estes últimos, quase todos, bravos operários, são as vigas mestras dessa descomunal ópera aberta. Têm a virtude da tolerância inesgotável, da esperança renovável e a certeza do perene perecimento por uma grandeza humana, única, que um dia finalmente há de ser. São assim, conquanto tudo viva parecendo contrariar esta não menos perene esperança.
Os destacados protagonizam eventos cujas causas e efeitos os sobrepõem e os imortalizam como heróis ou vilões. E assim o são não apenas por atuação, o são por omissões igualmente. E muitos são os omissos que posam como e passam por heróis. E muitos dos que se entregam de corpo e alma na construção de certas causas sociais, humanas, e menos pessoais, são dados como e passam por vilões.
Os conflitos, os atritos que os movem e os entrechocam, e os nomeiam, e os alardeiam como tais, têm causa comum: a condição humana. Numa invariante cujo arquétipo, por certo, é o perdido Paraíso. Concebido, mas não vivido. Prometido, mas não concedido. Um Paraíso a ser construído no tempo e espaço vividos: a Terra – início e fim de todas as coisas. Ou não. E sim um Paraíso perdido cuja conquista se aplica neste tempo e espaço – o terrestre, o início, e termina noutros, o céu – o fim.
Então os heróis-vilões que contracenam com os vilões-heróis agem, tendo em conta uma coisa comum cujos fins, todavia, são diferentes paraísos. Logo, fazem dos muitos comuns e mesmos recursos e meios usos e empregos heterogêneos.
E, em meio a isso tudo, o meio em que essas histórias acontecem, por certo, tendo como causa sua própria condição, mais que o grande espaço, é uma personagem tanto adjuvante, quanto oponente. Não se presta ao jogo de intrigas propriamente jogado por aqueles. Nem tampouco age como as anônimas personagens-operárias. Porém, parece que com tolerância, não passiva, tem admitido a convivência com aqueles outros todos personagens na conjugação de suas causas: a preservação da condição humana em consonância com a preservação da condição natureza.
Então a natureza não se retira como espaço (palco) desta história (espetáculo). Ao contrário, não obstante tenha se entregado à boa convivência, é indiferente ao conflito infindo entre os grandes protagonistas-oponentes que, por isso mesmo, têm sido dela mais oponentes do que comparsas. Ao contrário das personagens-operárias, ela tem reagido, o que complexifica ainda mais a trama urdida, tornando esta história uma (até quando?) perene obra aberta.
Por seu turno, o narrador está magistralmente em posição de absoluto distanciamento. Sua estratégia é o recurso de uma grande polifonia discursiva. Não narra a história. Deixa que ela se conte por si mesma. Que os múltiplos discursos, impregnados de sua ideologia, polemizem na contraposição de seus interesses.
Uma neutralidade narrativa talvez apenas estratégica mesmo, deixando assim que os narratários (espectadores, assistentes, ouvintes ou leitores), ante a crueza dos discursos que os querem persuadir, revoltem-se, saltem para dentro da história e atuem pela sensatez, cuja vitória será a salvação única é indistinta.

Leitura

Leitura é fonte. Instaura indimensionáveis venturas. Ensina a viver, apesar das indesejáveis pisaduras. Encaminha às mais impensáveis alturas. Expõe as espúrias criaturas. Dá feição às enrustidas imposturas. Semeia largamente incontáveis culturas.
A leitura é um trem portentoso a trilhar aclives, declives, curvas incríveis, paisagens inesgotáveis. Trem cujo passageiro, aceso em seus cinco sentidos, vai entre repousado e atônito.
Leitura assegura a imortalidade. Torna o findo um constante inacabado vivo. Leitura é uma senda a perdidos. A estrela guia apontando a entrada. Ou a saída. Um farol à nau perdida. A tábua a náufrago. Bálsamo para uma causa perdida. A chave de um enigma. A iluminura a certas angústias. O abalo de sedimentadas estruturas. O barulho à serenidade de um silêncio. Incômodos a certeza absoluta.
A leitura rompe com a ignorância. Atormenta as ditaduras. Fomenta a paixão pela literatura. Desvenda obscuros. Torna mais perceptível a formosura. Faz o conhecimento conquistar desenvoltura. Aperfeiçoa a convivência da diversidade. Expõe o podre, a lama, a falcatrua. Desencilha de pesados fardos.
A leitura exercita a língua. Afia a fala. Provoca o léxico. Instiga à consulta. Habitua à pesquisa. Incute a sintaxe. Depura a prosódia. Requer sinonímia. Evidencia o significante. Vela a significação.
A leitura sabe sobre o mundo dos homens, dos animais; sabe sobre o mundo espacial, sobre o mundo da ciência. Sabe sobre os mitos, sobre os místicos. Sabe sobre os sabores, os rancores, os destemores, os despudores. Sabe sobre as estripulias, as ousadias. Sabre sobre a imprescindível desnecessidade da poesia.
A leitura despoja o âmbito dos elementos trágicos, mágicos, dos fantásticos universos dos romances, dos contos, das crônicas. A leitura põe ordem no caos. Põe caótico um estado de ordem. Desestabiliza uma ordem de Estado. Devassa a pudicícia. Heroíza prostitutas. Diviniza certas musas. Deifica certas loucuras. Bruxiza certas criaturas. Cativa legiões de ledores compulsivos. Apaixona amadores de livros.
Em silêncio, a leitura é ato íntimo. Precisa de só ser. E ser só com quem a provê. A leitura habita espíritos recolhidos, jungidos. Reconforta aflitos. Aflige ingênuos. Assusta tementes. Importuna poderosos. Desestabiliza os que a desdenham.
A leitura é ato comunitário. Reúne pessoas. Que lêem juntos. Que lêem umas às outras. Que com ela se fortalecem contra grandes insultos. Pessoas que tornam a leitura sua uma urdidura.
A leitura é o sumo da vida. Apazigua clausuras. É entretenimento, que a infância entretece. Instrumento com que se instrui o jovem. Alento e alimento à alma do homem. Desvanecimento da velhice.
A leitura é cravo e ferradura. Constrói, mas também discrimina criaturas. Uma contradição que dói e dura. Instrui e plenifica, quando, mais que dádiva, é direito à vida. Sujeita e danifica, quando negada e impedida.
Ah! Sem nenhuma dúvida: leitura é a autêntica vida. Se não passada, se presentemente precária, é pacto inegociável de vida futura.

Tres amores

Pendido, à cata do sol que a vida lhe ilumina, o jacarandá parece ofertar-lhe alguns ramalhetes de suas flores. Azuis flores escoriadas de roxo.
Encarecido jacarandá ali nascido, que as mãos dele na terra escalavrada depositou com carinho e gosto. Ele foi crescendo, tomando corpo, ganhando robustez aos poucos. Agora, uma altiva donzela a espargir suas dádivas feitas de sombra e daquelas roxas flores marchetadas de azul, discretamente lindas, espargindo beleza e alegria àquele espaço.
Caprichosa, agradecida, com o extremoso trato que lhe devota, tem sempre vivos à sua vista, quando as estações lhe autorizam, uns cachos viçosos para contemplação e envaidecimento dele. Que decerto ao mirá-la, furtiva ou frontalmente deve orgulhar-se feito um genitor ante os dotes admiráveis de uma sua menina.
Ainda aí não se esgota sua dadivosa retribuição a seu progenitor. Que, para não deixar que consigo extinga sua majestosa beleza, produz sua reprodução em uma vagem, cujo formato segue o belo que a veste. E sua pérola repousa revestida de camadas esponjosas como a dar toda a guarida para a absoluta preservação de tal relíquia. Um jacarandá amado retribuindo com seu esplendor.
Todavia, bem sabe, não lhe poder obter exclusividade. Nem nunca pensou isso conquistar ou mesmo lhe pedir. É coisa esta da natureza humana. Lá eles se querem uns aos outros com exclusividade. Assim não dá para ser com plantas. Ela mesma ali publicamente exposta não é apenas dele. Sua beleza está para os transeuntes. Há os que não a vêem, sequer. Vão olhando para os seus problemas, não têm olhos para árvores ornamentais. Talvez apenas as pressentem à medida que passam. Por certo, tem-nas como algo natural. Que ali está e que parece sempre ter estado. Capazes mesmo de não se lembrarem de que uma delas existiu anos a fio onde hoje há tão-somente chão de cimento.
Entretanto se sente uma árvore dele e para ele. A ele se entrega. Para ele se embeleza. Para ele põe viçosas e aromáticas suas roxo-azuis florzinhas. Por ele aprimora os rendados verdes de suas delicadas folhas, que ao sol rebrilham. Ser pública é sua condição de ser da Terra. Ser dele é sua opção de amor por outro ser da Terra. É compreensível que ele se divida. Afinal, uma árvore só não faz um admirável jardim. Mais de uma é necessária para sua eficácia. Daí, por certo, a dedicação dele às duas outras.
A acácia entremeia-se com ela e a brinco-de-princesa. Não sabe por que essa ordem. Se quis à acácia destacar em virtude de umas suas certas propriedades chamativas. Soube que se trata de uma acácia-vermelha, cujas flores são róseas. Ela (tem de admitir) vai formando formoso e elegante porte. Erecta, vai, quase simetricamente, abrindo seus galhos longos, langorosamente perpendiculares, figurando-lhe um porte espadaúdo, indo a cada dia em busca de seus dez metros de altura. Já vai com ela ombreando-se. Não lhe ganhará em tamanho, contudo é de novo justo admitir que se lhe sobrepõe em elegância. Sua esperança é que, no final, se não se lhe igualar, tenha o suficiente para dela nada cobiçar. Sabe-se bela e muito querida. Isto lhe basta.
A pingo-de-ouro não passa ainda de um broto. Mesmo quando adulta lhes deverá muito em altura. Porém nada tem de desmedido e desengonçado em sua compostura. No geral, tornam-se, as pingos-de-ouro, numa pequena notável. Mimosas, elegantíssimas em seu colorido magistral. Mais imediatamente atrativas com seu ouro encarnado, que a recobre toda.
Também com ela o vê despendendo demoradamente sua atenção. Não sabe se a acácia,quanto a pingo-de-ouro lhe tem dela o amor. Como também não sabe o quanto do amor dele a elas. Sabe, sim, que a elas ama, porque muito bem as cuida.