Trégua

Data 14/dez/2005

Fora ver a quantas andava o jardim. Apascentava-o com a mesma dedicação com que se entregava às suas outras paixões. A indômita vividez de seu terno pastor; a adorável vividez de seus inefáveis netos…
Dava à displicência do livre crescimento dos tendões da primavera um redirecionamento. Amarrava-as, quando indomáveis afastavam-se da cerca, onde deveriam distender-se como proteção e enfeite. Os espinhos afugentando os gatunos. O colorido das várias cores de suas flores atraindo e agradando os muitos olhares. A graminácea verde e aparada. Livre das todas espécies de pragas. Os pingos-de-ouro crescidos até os portes devidos rebrilhando ao sol seu amarelo ameno. A brinco-de-princesa toda airosa solta no meio com seu fêmeo porte exibicionista. Mas contida, para que vaidosa, não invada os espaços de domínio da acácia rosa.
E, estando nesse a esmo andar pelo jardim, a tudo perscrutando, foi interceptado por alguém que, pela calçada rente à cerca que ia sendo tomada pelas primaveras, passava.
O interceptante, atarracado, grisalho, calvície em pronunciada progressão, barba de dias, barriga saliente, visivelmente peludo, saudou-o veementemente como um seu velho conhecido, arrematando com o inevitável e constrangedor “você está lembrado de mim, não é”?
Ele, como quase sempre acontece em tais ocasiões, não estava. Todavia, como também acontece em tais ocasiões, debaixo de seu sorriso de constrangimento, disse que sim. E logo disfarçou com o chavão despistador, ao qual se recorre para que a memória tenha tempo de trazer à tona a lembrança salvadora, perguntando ao outro como tinha passado, o que andava fazendo.
O passante não se fez de rogado. Enveredou na deixa e desatou-se num contar e contar-se sem fim. Funcionário público. Fora ele quem, certa vez, levara-lhe ao conhecimento um projeto de distribuição de material aos alunos carentes. Projeto porreta. Na condição de presidente da APM daquela escola, função que ocupara durante vários anos, até que o filho deixou de ser aluno dali. Mas a política havia intervindo. Enciumados parlamentares vetaram o seu projeto. E novamente indagou se ele se lembrava daquela grande façanha social que encetara, mas que os medíocres e medrosos vereadores (entendiam que ele estava fazendo campanha eleitoral com aquilo) não permitiram seu brilho.
Ele de novo não se lembrava. Todavia, manteve-se no mesmo tom desconversador. Que as coisas eram assim mesmo. Que o importante fora a boa intenção social dele, seu gesto humanitário.
O homem aí estava denunciadamente emocionado. O rosto congestionara-se. Os olhos avermelharam-se, umedeceram-se de lágrimas. E ele disparou na exposição de sua tragédia. Aposentara-se com um salário aviltante de funcionário raso. A mulher o deixara. Um câncer encalacrara-se em seu abdômen e não mais lhe dera paz. Alastrava-se de um canto pra outro. Uma filha casada apiedara-se dele e lhe dera um puxadinho nos fundos para viver o resto dos seus dias. Não era reconhecido pelos netos, que mal e mal queriam ficar com ele. Decerto a imagem de avô que lhes fora incutida era outra…
E enquanto atabalhoadamente, desenfreadamente ia assim dizendo, já havia entrado e estava ali no jardim ao lado dele. Já o corrigia nos arranjos que procurava dar às primaveras; já apontava um cuidado que imediatamente se deveria dispensar aos coqueirinhos: podá-los de um jeito que ele sabia bem; já condenava a persistência, no canto do jardim, de umas bananeiras (não podia, quebravam toda a estética); já se indispunha contra o tratamento dado aos cambarás…
E entusiasticamente, investido da sua condição de antigo funcionário da Agricultura, que andara pelos campos lidando com os campesinos de toda ordem (também como um dos mais considerados ex-presidentes da Associação de Pais e Mestres), pusera-se a ensinar ao dirigente daquela escola as competências e habilidades devidas para um ajardinamento de sucesso.

 

Corpo iludido, mente tosca

Data 30/nov/2005

Confessava-se temeroso de parecer politicamente incorreto. Cara ultrapassado. Conservador renitente incapaz de compreender o novo. O mundo da internet operando virtualidades reais encantadoras. O celular concentrando os elementos da comunicação simultaneamente, permitindo que se fale, se ouça, se veja. Outro mundo.
Não há que ver, o profeta da comunicação fora de uma vidência impecável. A tecnologia tornara mesmo a Terra numa grande aldeia global. Sim, global, não igual ( o que talvez fosse a solução, mas que é apenas uma rima). Uma aldeia global multifacetada de ainda mais acentuadas diferenças sociais de toda ordem. Não, todavia, a diferenças dignas e merecedoras de respeito e consideração. Não.
Aquelas indignas. Aquelas que são notórias (e deveriam ser vexatórias) discriminações. Aquelas que são agressivas lesões à convivência social humana. Aquelas que privilegiam o poder da riqueza. Que implicam o aprofundamento da pobreza. Que implicam a manutenção da miséria. Que humilham o sujeito. Que estabelecem a subserviência. Que geram a indigência. Que perenizam a fome. Que marginalizam o homem. Que propiciam o furto, o roubo, o assalto, o seqüestro, o tráfico. Que sustentam o crime organizado. Que fomentam o crime desvairado.
Mas também se confessava incapaz de conivência com aquilo. O seu País continua no infortúnio. O seu País, que é o de seus filhos, sob as gritantes e degenerescentes diferenças. O seu País, que é o de seus netos, persiste em manter a política dos ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
As muitas diferenças estampadas em cada gesto; em cada veste; em cada residência; em cada condução; em cada fisionomia; em cada sorriso; em cada bairro; em cada restaurante; em cada bar; em cada supermercado; em cada linguagem; em cada fala; em cada programa de televisão; em cada filme; em cada música; em cada programa radiofônico; em cada igreja; em cada bebida; em cada marca de cigarro; em cada forma de se haver com a droga; em cada assistência médico-hospitalar; em cada assistência e atendimento odontológico; em cada atendimento bancário; em cada atendimento político-administrativo; em cada tipo de leitura.
E em cada escola freqüentada, a reprodução dessa estrutura não apenas mantida, mas expandida. A secular e unânime constatação de que as excelências escolares são para os ricos; as degeneradas, para os pobres. O ensino básico das escolas públicas oficiais, durante todo esse tempo tem funcionado como um gigantesco laboratório de experiências pedagógico-educacionais sucessivas, inacabadas. Que vem edificando progressivamente a ruína de um espaço que poderia, que deveria ser o lugar incomum para, se não extinguir, diminuir significativamente a diferença em educação e cultura. As quais implicariam a diminuição em todas aquelas outras.
Mas não. Essa escola, sob o paternalístico (sempre condenado, porém, redivivo) discurso de que se enraizara a prática da discriminação, do autoritarismo, da sadomasoquista reprovação, em virtude dos muitos erros e equívocos a que tais procedimentos efetivamente conduziam, essa escola passou a cultuar o predomínio do hedonismo: a recreação, o entretenimento, o esporte (“os jogos”) a merenda. O “respeito” à diversidade cultural; a maldição à repetência e à evasão; as pesadas punições ao que poderia ser considerado agressão verbal ou física dos professores; os experimentalismos dos métodos de alfabetização e os grandes equívocos e incompetências para com eles; a desqualificação massiva da formação de professores foram gerando um contingente assustador de analfabetos formais, que foi estendendo-se do ensino fundamental I para o ensino fundamental II, deste para o ensino médio, deste para o ensino superior.
Constata, pois, com muita consternação, o aprofundamento das diferenças de formação qualificada entre a escolas públicas oficiais (tidas como escola de todos) e as particulares. É certo que ainda as superiores estatais, de um modo geral, resistem (algumas a duras penas) a essa massificação deteriorante de ensino a que muitos equivocados insistem em denominar de democratização.
Toda e qualquer atividade proposta, hoje, na escola pública oficial que seja de caráter esportivo (“jogos”) e recreativo, o que significa a pura liberação de adrenalina, é exultante. Nem se fale, todavia, em atividade cultural, para a qual seja necessário concentração, leitura, reflexão, raciocínio, exigência e ocupação dos neurônios. É logo rechaçada, intolerável. Isso em plena Era Tecnológica, a que estaria, mais que todas as outras, propícia à aquisição dos conhecimentos.

O que vem assistindo e vivenciando, com a complacência e ação das magnas autoridades governamentais, com perdão do exagero, é a ilusão do corpo são e a  profusão da mente insana.

O que vai deixando de ser (e não podia)

Data 16/nov/2005

Um silêncio profundo dentro de sua intensa luminosidade. De um sol cegante de tanta ardência de luz. Sol tropicalíssimo com seu metal brasante pondo pavor em quem pensasse como seria o inferno.
As manhãs compunham-se tácitas sob a fornalha solar que, há pouco ateada pela aurora madrugadora, irrompia o dia, cada vez mais pleno até o máximo de seu fogo cáustico: o sol a pino.
Tácitas manhãs. Tecidas pelas leves, sutis e apascentadoras mãos maiúsculas da tecelã mãe natureza. Com suas muitas agulhas costurando a manhã. Artesã maestrina compondo com cores breves, efêmeras, indo do róseo-aurora ao ardente ouro da tarde plenificada. Para depois, então, pôr fim ao dia em tons próximos aos do início. Mas um róseo mais cóbreo-roxo.
As múltiplas agulhas gorjeantes tecendo o manto-canto, dando ao agudo silêncio seu mais depurado revestimento. Toadas antitéticas – canarinas, pardocas, pombalinas, rolinhas, siriris, bem-te-vis, sanhaços. À parte os colibris e as borboletas dando em cima das flores que desabrocham na ânsia de saciar sua sede de luz.
A agulha-vento com seus vários operários que só em casos muito graves se revoltam e, enfurecidos, tornam-se tempestades. A brisa. Ah! a brisa com seus sutis toques suaves passeando os corpos, penetrando os poros. Brisa mansa que beija e balança as coisas, os trastes, as folhagens, os miasmas, os pauis, os belos louros, negros e soltos cabelos.
A aragem. Ah! a aragem que torna ainda mais refinada a si a delicada leveza de servir-se de refrigério. Com sua indelével e perspicaz passagem mal fere a pele dos lagos, dos rios, dos mares. Nos homens, nos pássaros, nos bichos se limita, pudicícia, a percorrer tão-somente pelas penugens. Sopra-lhes o bom e inebriante frescor imperceptivelmente. Assim o faz em rítmica cadência alternativa com sua irmã brisa. Esta vem com seu bom e leve, mas acentuado sopro de boca cheia. Esvaziado, se vai, decerto, tomar fôlego. Então, em socorro, a arrefecer a ausência dela, entra a aragem com seus toques mágicos. Refeita a irmã, ela se retira agraciada, nada se importando com ser uma adjuvante. Sabe, por constatar nas faces, dos regozijos por tê-la.
É sabido também que sói acontecer, quando em vez, há de ver porque as irmãs hibernam-se em suas merecidas férias, vir ao trabalho a indolente viração. Há quem afirma que a viração é a plena maturidade a que chega a brisa. E que nesta fase age por si mesma. Em contínua durabilidade. Vara a manhã, a tarde e sustenta o bem estar da noite. Mas aí ganha uma camaradagem. Sucede-a, já quando a noite é andada, o arilho. Trata-se de um vento senhor. Senhor meio áspero, com alguns caracteres casmurros, com pitadas de rabugices. Por isso, quase sempre torna as altas noites frias.
A tarde o que faz é curtir a indolência advinda da dura incidência solar que a tudo fustiga com sua fornalha em pleno vapor. Põe tudo em modorra. Os bichos arfam ou adormecem sob a mais fresca sombra que as altivas árvores garantem (Mas elas estão progressivamente se acabando, que o homem, conquanto as saiba imprescindíveis, ainda assim as corta; que o vício das drogas acúmulo, abastança, poder não o deixa agir com os neurônios.) Os homens, nos seus afazeres, vão mais devagar. Assim, até a tardinha cair. É agora o sol quem vai modorrento. O crepúsculo acalanta-o de forma irresistível. Hefaísto cai em profundo e inabalável sono.
Eis então que a noite vem. Ficam ainda acordados, ávidos por cortejá-la, mal adormece o sol, os homens. Que os pássaros e os bichos, fidelíssimos ao dia também se recolhem.
Ah! a noite com sua corte. Seu manto negro acoberta infindáveis e excitantes segredos. A noite com seus sortilégios. A noite é sempre uma moça encatadora, cuja turba de convivas são sedutoras ninfas estelares. Todas sensualíssimas. Enfeitadas com seus diáfanos diamantes. A liderá-las, a filha mais prendada que a noite não entrega a ninguém. Dizem que, se o fizer, ficará completamente cega. E desse modo não mais conseguirá escapar, a cada fim de noite, da tara voluptuosa que por ela tem o sol.
E prescrito está pelos deuses que, se o sol a possuir, será o fim. E os tempos não mais terão noites E, acabada a noite, perecerão todos os que precisam adormecer para a vida. Dentre estes, os homens. Que perdidamente amam a noite, mas que também, mal rompe a manhã, acordam para se entregarem à devastação do planeta onde a noite se esconde.

Uma flor

Data 05/nov/2005

A flor da cidade. Uma magnólia exposta aos olhos todos cobiçosos e reverencidores. Olhos gordos. Olhos que buscavam devassar o intransponível. Por gula, prazer, admiração, ou somente a curiosidade feita das mais diversas intenções. Desde a comparação (em que sou menos que ela?) à ânsia de identificar um defeito mínimo que deporia contra aquele absoluto esplendor.
Uma pobre cidade pequena, modesta, o seu reino. Rainha inconteste. Portadora de rara beleza que mais esplendente ficava por seu dom de bela amabilíssima. Por certo continha as rédeas da vaidade. A todos com os quais se encontrava distribuía sorriso e cumprimento. O que a credenciava ainda mais em simpatia e bem querer. Bela, inteligente e cordial. Prenda-mor que a cidadezinha, orgulhosa, ostentava e difundia.
Também a protegia como sua mais cara relíquia. Era uma defesa natural. Como um pai protege a filha. Como um pastor defende suas ovelhas. Como um bicho cuida de sua cria. Os cidadãos todos da pequena pobre cidade se comportavam como naturais guardiões daquele patrimônio público encarecido. Houvesse algo errado contra sua magna donzela, rapidamente se informavam. E medidas imediatas se tomavam.
Parecia que ninguém ali pensasse em empreender uma decisiva ação de conquista a si do coração da magna donzela. Pertencia ela – patrimônio – à alma coletiva. Logo não podia ser de um só alguém. Não que isso se discutisse. Não. Tal fato era de certo um tabu. Todo o mundo, sem o dizer, sabia-o. Ela era uma pública donzela cujo usufruto particular, mais que um abuso, seria um imperdoável ato escuso.
Magnificamente vestida a caráter, ela assimilava os cortejos, o gracejos, os motejos (os velados desejos) os inumeráveis galanteios, onde fosse. No baile de gala mensalmente promovido pelo clube. Nas concorridas festas juninas para os fundos sem fundo da igreja. No palanque-mor, para prestigiar o desfile de aniversário daquela graciosa pequena cidade pobre. No carro-mor alegórico no desfile imperdível da escola de samba do município.
Cada momento desses, mais servia para a cidade venerar a sua deusa da beleza, que tão bem aqueles ciosos cidadãos tacitamente sabiam preservar. E a cada tributo desse, retribuía com seu efusivo sorriso, com a elegância de seus gráceis gestos. Inefável flor encantadora daquele rude jardim, cujos jardineiros esmeradamente a apascentavam.
Ela conduzia-se, não obstante jovem, com a maturidade de mulher plena. Não transparecia nela traços de pressa. Embora os anos andassem. Não havia notícia de quaisquer espécimes de homem em sua vida. Isso havendo, logo se saberia.
Sim, ausentava-se, rigorosamente, nos três meses das férias de verão. Para onde, exceto a mãe, que nada dizia, não se sabia. Nem se procurava saber, por que não se sabia, tampouco por que não se poderia saber.
O certo é que veraneava. Voltava ainda mais bela sempre. Três meses de tácita apreensão. O receio de que voltasse com um homem à tiracolo. O receio de que não mais voltasse. Cansada daquela vida de pura adoração. Desejosa de passar despercebida (o que por certo seria impossível), fosse para uma grande cidade, para nunca mais.
Mas os temores não passavam de temores. Voltava dourada para seus adoradores. E sozinha, como sozinha ia. E dedicava-se aos bailes, aos desfiles. Vestida de sua inigualável beleza, de seu humor, de sua simpatia.
A cidadezinha com sua princesa. O caso ganhou a boca do mundo. Em todo recanto se sabia do encanto que ali produzia a beleza daquela mulher. Encanto de efeito comprovado: zero, o índice de criminalidade. Zero, os índices de furto e roubo. Zero, o índice de indigência. Zero, o índice de pobreza absoluta. Zero, o índice de evasão e repetência escolares. Zero, o índice de mortalidade infantil. O fato, averiguado, causava espanto. Mas era uma singularidade. Algo tão intrinsicamente próprio daquela cidade. Não se prestava como modelo. Pois que, ali, brotara, naturalmente, como uma rara flor. E tudo fora se dando de forma simples e espontânea.
Todavia, deu-se o imponderável. A donzela bela, um dia, amanheceu morta. A comoção vazou por todos os poros da cidade. Espalhou-se pelo país a sua súbita orfandade. E ninguém se atreveu a conhecer a causa-morte. Era necessário, ainda que com muita dor, respeitar o seu direito de morrer. A verdade da morte não era necessária.
Decerto mudava seu modo de reger a paz daquela cidade. Passaria a regê-la morta.

 

Pinhé-Pinhé torna a reinar

Data 20/out/2005

Então o bisneto, que em pequeno muita vez adormecera a sonhar no embalo das histórias narradas pela avó, cedeu às instâncias dos netos. Olhou bem dentro de cada par de olhos estendidos na poltrona e anunciou. Trata-se de uma história de pássaro. Longa história e interminável no tempo do pai de vocês criança. É a história da vida do gavião Pinhé-Pinhé. Garboso pássaro carnívoro que reinou absoluto por aqueles sítios campicitadinos. Atenção, meninos, lá vem Pinhé-Pinhé.
Num vôo rasante, magnificamente aterrorizador (eles britariam de espanto e ririam de medo), Pinhé-Pinhé aterrisou. Soberbo pássaro. Imponente por natureza. O garbo do porte, pouse onde pousar. Se no solo, se move feito aquelas donzelas em passarelas modelares. Vai em si por si mesmo. Não seduz. Impõe-se, que a fome tem pressa. Nada escapa aos seus olhos como aos de águia. Porque Pinhé-Pinhé também não é a águia lá do sertão. O carcará temível. Que, esse sim, mais da águia se aproxima: em porte, feição e feitos. Come cobra, quando há nada que se escolha. Ataca burrego, bezerro recém-nascido, se o descuido do sertanejo, nos pastos os deixa. Carcará é coragem e valentia, já o imortalizou a clássica canção com que nos agraciaram José Cândido e João do Vale.
Pinhé-Pinhé, todavia, não fica tanto atrás. Tem suas ousadias. Sua morada, seu habitat, as matas de pequenos sítios próximos à cidade. Onde campeia. Com estridente piado de quem se acha em guerra, Pinhé-Pinhé sobrevoa estes ares sempre pronto para súbitos ataques. Ai dos pintinhos pelos quintais, não obstante a não menos valentia da galinha-mãe: penas todas eriçadas, asas abertas, bico em riste, tenta investir em Pinhé-Pinhé. Não lhe dá de barato sua cria.
Os pássaros pequenos – pardais, pombas do tipo amargosa, sanhaços – apavorados se safam como podem. Os bem-te-vis, porém, que por aí residem, não só não se intimidam, como em Pinhé-Pinhé investem bicando-lhe o dorso. Porque menores, mais ágeis no espaço. E com seus agudos bicos molestam o doméstico gavião Pinhé-Pinhé.
Salvo, finalmente, por um galho protetor, Pinhé-Pinhé solta seu grito de guerra e raiva (Ai dos bem-te-vis: se os pega, espedaça-os!) E seus extraordinários olhos de super-homem espreitam todo o território. Quase impossível que presas não vejam. Decerto estuda-as sem que muitas não o percebam, não o pressintam. São as mais vulneráveis.
E, súbito, sem que nada se desse, quando tudo no quintal reinava em calma, sob o forte calor, Pinhé-Pinhé, vindo não se sabe exatamente de onde, ali desabou. Houve um reboliço de tatalar de asas e gritos de pássaros em aflição.
E espantado de incredulidade, o dono do quintal viu o predador debater-se, por instantes nos galhos de um pé-de-pinha, derrapar no chão de cimento e ir pousar num galho da goiabeira. Tudo num relance. Mas com ele nenhuma presa.
Verdade. Pinhé-Pinhé não abatera seu jantar. E se não houvesse engano, que a natureza apenas soubesse, o que o impediu foi, decerto, não contar com o pé-de-pinha no meio do caminho. Ou por não tê-lo dimensionado com a devida precisão, já que aquele ia em seca progressão.
Certo é que Pinhé-Pinhé achou o alto da goiabeira. Onde pousou decerto meio humilhado e cheio de ira. Cometer tal deslize por certo depunha contra a honradez dele próprio, sarado e garboso gavião. Ou fora um prenúncio, aviso primeiro de que a mocidade já o deixava e com ela iam as agilidades e espertezas?
No chão do quintal, viu-se que se debatia, desesperado um filhote de pomba. Era a presa perdida. O dono do quintal pegou-a. E constatou quebradura de pescoço. Estava completamente acabada em seu princípio de vida. Melhor e mais justo que Pinhé-Pinhé a abatesse logo, que agonizar no pó do chão e depois se servir aos vermes.
Decidiu, pois, depô-la em um galho de árvore claramente exposta ao gavião que continuava no alto da goiabeira. Moral abatida, embora não perdesse a pose. Em absoluto silêncio (não mais emitira seus pinhés-pinhés), mas atentíssimo.
E Pinhé-Pinhé veio. Por segundos, voando pairado no ar, ficou diante da avezinha jazida. E de repente alçou enorme vôo-de-embora, soltando seu pinhé-pinhé de guerra.
Os meninos se entreolharam. Depois, o avô. E o mais velho (em seguida repetido pelo mais novo): ah! vô! Conta direito a história.

 

Psicose

Data 05/out/2005

Viu-ouviu-viu o estampido. Sentia a presumível sensação de um atingido. Não havia dor nenhuma. Mas se sabia envolvido. O clarão cegando-o simultaneamente de tudo. O corpo leve, solto, desgovernado como o de um astronauta em inspeção interna. Assustou-se muito. E em seus rodopios via plastas avermelhadas pelo chão, nas vitrines, em finas roupas expostas, em flores de canteiros ornamentais, em gente estirada, em gente em movimento. Pessoas correndo, se contorcendo com expressões de dor e sujas de sangue. Ouvia indecifráveis vozes de pavor, talvez; de agonia, talvez. Depois, ainda flutuando, lenta e levemente, como uma pena de pássaro pego por um tiro mortal, ou uma folha seca desprendida, veio vindo ao chão.
Pousado. Sentiu insuportável tontura. Arrebatava-o, autoritariamente, por mais que se opusesse, por mais que se esforçasse por impedir, um sono poderoso, inafastável.
Agora, em seu sonho, conduzia-o uma daquelas macas motorizadas para retirar jogador de futebol contundido. Embora a maca-móvel trafegasse sobre o gramado do campo, ia estrepitosa, sacolejando-o excessivamente, parecia mais contundi-lo ainda.
Então pôde ver que seu corpo seminu, torso descoberto, pés descalços, calças rotas, rasgadas, arregaçadas, ia manchado, escoriado de sangue vivo, lhe escorrendo não sabia exatamente de onde.
Mas logo percebeu que se tratava de intensa chuva. Que lhe batia nos cabelos, no rosto, enfim em todas as partes frontais do corpo. Chuva vermelha. Sem, todavia, conter gosto de sangue. Continha gosto agradável ao seu paladar. Que sorvia discretamente com prazer. Gosto de mel de jataí que sua mãe, a duras penas, comprava para curar-lhe uma maligna bronquite danosa à saúde de seu primogênito menino. Porém, logo tornou-se sabor de framboesa com que hoje mistura em seu leite do café da manhã.
O leito em que fora deposto, de dureza rude, lembrava-lhe a altiva rocha rente ao mar, onde mantivera, intensamente, uma relação de amor, sob pálido luar, prazerosamente, com uma formosa e gostosamente sacana garota de programa. E, súbito, foi tomado de uma comoção orgásmica. E de seu sexo semi-erecto jorrava sêmen em profusão. Apavorado, envergonhado, procurava, inutilmente, esconder-se de muitos olhos que, agora, de repente e surpreendentemente o fitavam e da garota que, nua, rolava pela pedra de tanto rir daquilo tudo.
E, enquanto assim procedia, a mulher apontava-lhe, com os indicadores de cada mão, para o céu. De onde vertiginosamente caía sobre ele uma enorme bola incandescente. Apavorado, não conseguia mover-se do lugar. Tampouco gritar, embora desse tudo de si.
Aí acordou com a mão da mãe sobre sua cabeça e um complacente sorriso e olhar. Sentidos recobrados, deu-se conta de que adormecera, enquanto lia, no jornal, a notícia sobre o mais recente caso de homens-bomba vitimando gente inocente na Indonésia.

 

Presente

Data 21/set/2005

A clássica rotina: campainha. O cara do correio. Sedex. Comprovante assinado. Os agradecidos cumprimentos. A bicicleta sai rápida em busca dos outros destinatários. Entra. Toda envolvida na encomenda. Distraída, subindo degraus. Trancando a porta, cerrando as cortinas.Curiosos olhos na gulosa busca de sentido para aquilo. Não atinava com as identificações do remetente.
E a distração fê-la sentar-se na primeira poltrona mais à mão. As mãos, desde o portão, vinham já, com o rasteio de hábeis dedos femininos, campeando o objeto, na rápida tentativa de obter-lhe a identidade. Não se tratava de livro. Não costumava recebê-los, senão comprando-os. Depois, o formato e a espessura também dissipavam essa solução.
Extraído o invólucro de serviço dos Correios, a primeira leve comoção. Vinha o objeto embrulhado com papel para presente. Ansiosa, ficou ainda um pouco mais fruindo aquela surpresa que se desfaria, tão logo executasse o desembrulho. Fino papel de seda. Delicadeza a toda prova. Primeiro indício de bem querer enunciado. Outro eram os desenhos em abstratos coloridos, lindos, que todo o papel compunham.
Então, papel esmeradamente aberto, sem que lhe imprimisse qualquer contusão, a surpresa ficou toda nua ante seus sentidos todos encetados nela. Acompanhava-a um pequeno envelope fechado. Onde, por certo, haveria mais outra emoção esperando-a. Conteve-se. Protelou-a para depois de ter-se dedicado satisfeitamente ao objeto principal. Aquele, pela própria natureza, indiciava alguns dizeres, decerto de felicitações.
Havia recebido um quadro. De tamanho mediano. Quase quadrangular. Moldura dourada com relevos, sugerindo trepadeiras floridas percorrendo a cerca-moldura. No centro, a ampla foto de uma flor.
Uma rosa. Uma rosa sem tamanho. Toda vestida de um lilás resplendente. Fixa numa firme verde haste cujos espinhos, nítidos, com sua ponta enegrecida e rubro úbere, decerto punham-se em guarda daquela formosura exposta a indefiníveis olhares cobiçosos.
Embora pendida, era uma rosa toda acabada em seu ciclo de fazimento. Resplandecia-se em seu inteiro vigor de flor completamente feita. Acendiam-se suas grandes pétalas vivazes com a incidência da luz solar tomando-as todas.
Entre embevecida e ansiosa por ouvir a carta acompanhante, deixou-se um pouco levar por emaranhados meandros da lembrança, com que insistia para suscitar-lhe algo vivenciado, em que rosa semelhante fora personagem destacada. Todavia os episódios onde houvera flores não lhe restauravam uma rosa assim maravilhosa, embora insinuassem. Algo dizia que sim, que houvera, houvera.
Claro, a carta desfaria o enigma. E sofregamente contida abriu-a:
Para felicitar-te nestes teus anos, a beleza da rosa de teus encantos. Decerto não te lembravas mais dela. Talvez também nem de quem te oferta-a. No entanto, ambos, o oferente e a flor soubemos bem assistir ao teu acentuado deslumbramento silencioso ante a magnitude daquela (essa) rosa.
Dia depois, este oferente foi insistentemente tentar obtê-la da proprietária. Que amável e resolutamente resistiu. Mas concedeu, no dia seguinte, que ele pudesse fotografá-la. Eis aí aquela rosa, agora, aí perenizada, tal como te encantou. É tua. A que viste não existe mais. Tampouco contigo existiria, se a tivesse ganhado como uma rosa.
Seja feliz, como decerto o foi essa tua rosa, enquanto viva fora.

 

Pai

Data 11/ago/2005

Filhos. Não tê-los, seria o fim. Mantê-los acaba sendo o que se tem por fim. No fim, sabê-los melhores do que fora. Pódio almejado quando se cuida desse vale de lágrimas, desse deus-nos-acuda.
A trilha de um filho em que se semeiam múltiplas minas: o canto das serias doidivanas; a magia dos alucinógenos; a sedução das vitrines; a decantação das linguagens com suas insinuantes pabulagens.
Filho estabelece estados vários no estado-família. Há que lhe prover com a melhor comida. Há que lhe obter as melhores acolhidas. Há que lhe conceber as mais dignas tratativas.. Há que lhe dotar das necessárias sabedorias. Há que lhe coibir as deformantes idolatrias. Há que lhe preparar contra as muitas patifarias. Há que lhe aclarar as destrutivas evasivas. Há que lhe alertar sobre as inúteis confrarias. Há que lhe vacinar contra as corrosivas mesquinharias. Há que levá-lo a aprender os estados de calmaria. Há que lhe ensinar os vários estratagemas contra os pusilânimes e as covardias. Há que lhe dizer sobre as astúcias das piratarias. Há que lhe encarecer os benefícios da disciplina. Há que lhe apontar os prós e os contras da rebeldia. Há que prepará-lo para as incessantes alquimias. Há que lhe acautelar das imperceptíveis ridicularias. Há que encorajá-lo pela conquista de sua autonomia.
Um filho põe um pai não só na condição de animal protetor. Bole com seus sossegados neurônios. O que lhe a de vir e o que lhe a de ser vão com ele onde for. Um pai por seu filho tudo faz. Dá-lhe mimo e cartaz. O quer, das crianças, a mais sagaz. Esforça-se por aceitar quando ele fica para trás. Um pai, mesmo o que de abrir-se não seja capaz, desmantela-se todo ao vir enobrecido o seu rapaz. Um pai sempre estende ao filho a sua bandeira de paz. Um pai projeta-se manifesta ou hermeticamente na virilidade do filho tenaz. Põe-se em consternação inconsolável, quando se lhe insurge um filho sequaz. Põe-se cabisbaixo, alquebrado ante um filho ferrabrás.
O sonho de pai é ter o filho alcançado ao triunfo. A esperteza do pai pelo filho acaba, muita vez, o tornando um grande intruso. A defesa cega do pai em favor do filho acaba quase sempre em inaceitáveis abusos. O excessivo zelo que lhe vota o pai, muita vez, põe o filho em desespero. O maniqueísmo por que se conduz o pai constrói o filho que vive com o medo em pêlo. A nenhuma humildade do pai fomenta o filho soberbo. As inoperâncias e truculências de um pai em desmazelo põem o filho em aflitivos atropelos. Os moralismos freqüentes do pai inconseqüente resultam um filho a esmo.
A confiança do filho no pai abre as portas para sua eterna aliança. As surras levadas pelo filho inoculam-lhe indefinido sentimento de vingança. O impacto que lhe imputa a alargada ignorância do pai semeia no filho uma ignóbil ganância. A incauta desfaçatez que move o pai instaura desgastantes conflitos com o filho, uma relação tecida pela completa escassez. Embora pareça meio impossível, muita vez, um filho tem o pai com declarado inimigo: porque é homem de pouco siso; porque é homem que não sabe dar senão tiros; porque é torpe marido; porque tem com os outros contínua atitude de bandido. Um filho conflita com o pai em virtude de oriundos das famigeradas gerações opostas. E, em vez de se darem conta disto, se dão as costas. Muita vez o filho é um prestimoso e dedicado pai do pai que passa o resto dos seus dias como sendo um filho que desfaz, acusando de pouco, o muito que lhe proporciona aquele filho pai.
Um filho ao pai: o meu pupilo; o meu guri. Um filho ao pai: o meu menino, meu orgulho, meu futuro. Um filho, ao pai: ele vai sair dessa, com minha luta, com minhas preces, com minhas promessas. Um filho ao pai: por quê, o que não fiz por você, o que não houve para o merecer?
O pai sabe que a mãe lhe precede no coração do filho, conquanto normalmente seja ele seu grande ídolo. Um pai: os passos do filho levando consigo os projetos, os sonhos que se fizeram por seu destino.

Homocaos

Data 28/jul/2005

O mundo em reboliço. Ou o reboliço do mundo aos nossos olhos. Aos nossos ouvidos. Mudou o homem? Ou mudaram-se seus conformes?
O mundo do avesso? Ou o avesso desse mundo justaposto ao seu oposto? A extensão do homem cada vez mais. O homem a passos grados, de ano em ano, de século em século, estendendo os seus tentáculos. A Terra, seu criadouro, majestosa esfinge pródiga e prodigiosa, túmida de mistérios e enigmas, a sedutora permanente.
Irremediável possessor; compulsivamente conquistador, o homem. Dilacerado por sua obsessão em desvendar-se, em atingir o mistério de sua trajetória imponderável; inconformado com sua individualidade efêmera, com sua subjetividade limítrofe, o homem.
E o seu subjetivismo gerou sua diversidade. O olhar de cada homem concebe-lhe a face do mundo; concebe-lhe os enigmas do mundo. São muitos mundos esse mundo único. Onde há fundos e sem-fundos; límpidos e imundos; deuses e diabos; nadas e paraísos.
E o homem assim sendo é bem menos interação. O confronto o estabelece e o desaparece. O confronto o forma, informa e o deforma. O viés do mundo consubstanciado pelo gozo de seu conforto. A esfíngica resistência da Terra instigando suas descobertas; que a tornam cada vez mais menos natureza. O homem com suas angústias; com suas indústrias. O homem com suas lesões, com suas devoções. O homem escavando seu infindo e desconhecido (definitivo). O homem consciente de que talvez para todo o sempre se desfaz, porque o atormenta a inércia da paz. O homem consciente de que vem de fatídica insaciedade sua inacabada porção de ferocidade. O homem com cujas dúvidas se conduz. O homem em sua peleja impelido por seus sonhos, desejos, medos que intrinsicamente o adejam.
A Terra que muita vez dá sinal de incrédula parece recorrer em vão a muitas formas de dizer que tudo isso muito a aterra. Decerto por se supor, sem ser presunçosa, de si absoluta senhora. Daí bem saber que a tudo e a todos em seu seio sobeja, ainda, seivas à vida. Mas também decerto presumiu que teria existências pacatas em formas animalesca e vegetativa.
Então decerto não contava com uma desarmonia, da qual despontasse uma linhagem animalesca estranha. Cujos nervos, músculos e sangue vibrassem uma viva energia nervosa que resultasse em atos abstratos, elaborados numa caixa cefálica de pensar.
E tais, contrários a todos os outros demais, fossem molestar seu o estaus-quo: cosmos que após o caos se fez. Auto-suficiente, ela todos proveria, sem exceção, conforme os mecanismos de equilíbrio e harmonia com que se estabelecera. A vida e a morte; o ar, a água, o fogo. Tudo em si encontrar-se-ia. Bastava a eles moverem-se em busca da comida, do abrigo e preservar-se do predador inimigo.
Entretanto, aquela estranha linhagem animal decerto a foi surpreendendo. Seus procedimentos em exclusiva atenção aos seus próprios provimentos foram irreversivelmente sendo de modo a incomodá-la. Do incômodo a transformações agressivas. Destas a intervenções transgressivas.
Aos poucos e progressivamente, o animal homem veio, cada vez mais ávido, modificando dela o estado-cosmos. Onde antes era tudo terra, água, matas, bichos, pássaros, ele foi derrubando, afugentando, desviando. E foi erguendo cavernas. Paliçadas. Ocas. Tabas. Castelos. Muralhas. Casas. Prédios. Estradas. Pontes. Carroças. Carros. Trens. Automóveis. Metrôs.
Foi o homem impondo-lhe ao seu estado natural o dele estado artificial: social, econômico, político, cultural, tecnológico. Foi o homem estabelecendo na Terra um estado de coisas: um homocosmos. Complexo. Dividido em inumeráveis compartimentações categoriais: países, classes sociais, religiosas. Homens pobres, ricos, mendigos. Terras divididas entre propriedades de alguns. Impróprias a muitos. E esses multíplices divisionismos o foram refinando em exímio homicídio. Logo a prática do genocídio que alcançou a alçada do banal. Extermínios dos mais comezinhos aos sempre espantosos. Cometidos por grupos, indivíduos, países com as mais sofisticadas armas.
Parece que à beira do impasse ante a decepcionantes revelações sobre si mesmo, não obstante o estágio de seu homocosmo, o homem se conduz ao caos. E de roldão levando todo o resto da terra, precipitando a Terra a seu novo caos.

O feio bonito lhe parece

Data 14/jul/2005

(Ághata: meu e-mail continua damaso, quando deve ser damazo)

Morto. A alcunha que na vida diária lhe substituíra o sobrenome. João Morto. Homenzarrão. E gordo. Um touro. E manso como toda força bruta. A surdez talvez ajudasse. E, em vez de irritá-lo, ela por certo o impelia a buscar a paciência do interlocutor. Homem pau-pra-toda-obra. Sorriso lábil fácil. Ser para os outros, tamanha era a solidariedade de João Morto. Lídimo exemplo de o feio bonito lhe parece.
Fora para ali aplacar a epidemia de malária. Pertencia ao quadro de funcionário da Saúde que a isso se destinava. A maleita e o mal de chagas. Pulverizavam casas e casebres em sítios e matas. O lugar, um recanto repleto de faltas, isolado, de difícil acesso. João Morto instalou ali seu sossego. Pois o feio bonito lhe parece: João Morto se casou com uma professora de escola primária. Vieram as filhas radicando-o ainda mais naquelas plagas em que, devagar, ia contornando suas pragas.
Criou-se a escola secundária. Cursos diurnos e noturnos com séries de quinta a oitava. Formou-se uma classe de alunos adultos. Quase todos alfabetizados pelo Mobral. Exceto um ou outro. Dos quais, João Morto. Estava acima do grupo. Descobrira a leitura há muito. Numa certa ida demorada para longínquos sítios e fazendas, levara um livro que lhe caíra à mão: Mar morto. A curiosidade da coincidência levou João Morto a ler. E Jorge Amado lhe fisgou o gosto.
Na escola, o professor de português o soube. Ficou surpreso. Aquele bruta homem que se lhe figurara um bronco! O período escolar foi para ele uma bênção. Exultava-se com as aulas. A todos socorria. Como se professor. Os professores um bando de meninada nova, recém-formados, eram-lhe instigação intelectual. Discutia. Perguntava. Consultava. Disparadamente o mais arguto e ligado.
Foi descobrindo cientistas, filósofos, poetas, romancistas outros. Encantou-se com Graciliano Ramos. Vidas secas foi seu assunto contínuo quanto tempo! A gente quase toda daquele lugar provinha do Nordeste. Como eles mesmos repetiam, era tudo cabra da peste. Para João Morto, ninguém, portanto, podia deixar de ler aquele romance. Instigava os professores de português a tornar a obra leitura obrigatória.
Por menos que nada ali acontecesse, ainda que em tudo parecesse sempre igual, o lugarejo ia pontuando-se de gradativa progressão. João Morto seguia cada vez mais surdo. Porém, a alma viva. Riso fácil no princípio; ou no meio; ou no final de alguma conversa. Ou durante, quase sempre.
Já descobrira Dostoiévski, andava querendo saber sobre Proust. Dissera ter curtido longo silêncio antes de anunciar aos professores que tinha lido Grande sertão:veredas. Tal o assombro.
De jeito nenhum suas filhas ficariam ali o resto de sua vida. Também elas já haviam vencido os níveis de escolaridade existente. Foi-se embora para uma cidade maior. Onde muitos parentes moravam. Aposentado. Vida de dentro de casa. As leituras, por mais prazerosas, não foram suficientes para impedir o tédio que, segundo o médico, tornou-se dura depressão.
Pegou doença física que o atirou em UTI. Não sabiam ao certo de que exatamente se tratava. Foi difícil e longo período. Safou-se, porém. Precisava fazer alguma coisa. Se não, tudo acabaria se repetindo.
Mas o quê, naquela altura? Viveu uns meses assim se indagando, enquanto vagava pelas calçadas, afugentando os males. Observava a vida que ia se desfiando nas ruas; nos bares; nos bazares; nas praças; nos pássaros. Trocava cumprimentos e sorrisos. Proseava numa banca. Reinvestigava as mesmices de uma única (livraria) papelaria.
Foi então que lhe cruzou o caminho seu Antônio Rosemiro. Fazendeirão sem igual lá daquele lugarejo. Vivia agora só que passeava. Tudo nas mãos dos filhos. Ordem médica. Ia mais a velha conhecendo os grandes comércios do Brasil.
Depois de muita prosa mutuoinformativa, seu Antônio Rosemiro firmou com o outro acordo apalavreado. Dentro de um ano, com tolerância de mais meio, João Morto teria pronta a vida romanceada de Antônio Rosemiro, o maior fazendeiro de Natelópolis, onde por muitos anos conviveram. Enquanto, João Morto já ia cogitando em fazer a mesma proposta a outros importantes conhecidos seus.