O fim como o começo

Data 25/jun/2004

     Quando foi presenteado portava um nome que no ato fora declinado. Era ainda completo filhote. Espigado cão de orelhona caída e rabo inteiro (ambos não ridiculamente cortados). Com os outros aninhava-se, juntos à mãe. Cadela bela, seter de bronze luzidio. Embora animalesca mãe como as demais, não agredia quem se aproximasse das crias. Dócil cadela, não menos protetora. Caso lhe arrebatassem um filhote ia atrás lambendo, saltando, ganindo evidentes declarações de que se tratava de cria sua.
Era uma ninhada farta. Donos cujos cães faziam parte do prazer de compartilhar a vida tendo em torno certas maviosas criaturas: árvores sendo habitat e passagens de pássaros; uns cães que tanto guarneciam quanto enterneciam a vida doméstica pachorrenta.
Os donos havia que repartir os filhotes com os que aos cães votavam igual apego; com os que com os cães compartiam o bem-estar de viver; com os que davam boa comida, bebida, abrigo digno, assistência outras, veterinárias; com os que têm no cão um companheiro: em casa, onde o cão está, postado está o dono.
Tal era o presenteado. Que ao deparar-se com ao ninhada, logo e viu completamente afeiçoado àquele filhotinho negro. Que lhe veio, tropegamente, em seu mau equilíbrio de noviço, ao encontro. Trocaram carícias. Mãos alisando os pêlos, a cabeça, apertando o focinho. Boca concedendo mordidelas.
O cãozinho negro já não estava pertencendo à prodigiosa prole cuja mãe parecia aprovar a doação, a considerar os grandes e demorados olhares postos no homem, no filho e seu conformado arfar de língua agrandada.
Ido, o nome de ninhada, posto por influência de novela em vigor, foi substituído. E não chegara reinante e soberano, que a casa era povoada por outros cães feitos, sarados. Senhores dos espaços. Aos quais veementes recomendações para aceitação foram administradas. Mas, ele, filhote, por mais não quisessem, apanhou por seus atrevimentos de cão novo e por antipatias a novato.
O tempo, composto de bons repastos, bons tratos, aprendizagens que convivência e hábitos impõem, ao cabo de meses, deu num canzarrão. Esbelto, agilíssimo, mais, bem mais, que os anteriores. Negro cão com aparência parruda. Latido potente. Que sempre espanta muita gente.
Em quase tudo, o primeiro. Campainha acionada, chegava à frente do tropel que sempre dá o atendimento imediato.
Mesmo naquelas horas de aguda sesta canina, não cedia; e os pássaros mal podiam, mais sossegadamente, mesmo nessas horas, pastar.
Elegância. Andar feito aqueles corcéis ensinadíssimos na variabilidade marchadeira a mando de seu cavaleiro-instrutor. Toda vista primeira queria sabe onde havia sido adestrado para aquele exibicionista trote, mais apropriado a cavalo de exposição, de equitação.
Nada do que se credita aos sestros atribuídos às índoles de cães nele se confirmava. Enquanto comia nenhuma manifestação de contrariedade, a despeito do que lhe fizessem: carícia, escovação, investigação contra os parasitas. Se por alguma razão aprisionado, mantinha-se em conformado silêncio. Nenhuma estrepolia na hora do banho.
Ao pé do dono, estivesse este onde. Feroz, com seu latidão contra estranhos. Todavia, se junto ao dono, estranho deixava de ser.
Mas a senilidade se consumou. Ancião longevo, todavia, a velhice lhe foi subtraindo (e acrescentando). Inculcou-lhe um medo voraz de tudo. Os outros cães, súbito, passaram a lhe pegar com um ódio incompreensível. Então foi confinado. Quando se deu conta, cadê aquele vozeirão feroz. Emudecera-se para nunca mais. Sequer um mínimo ganido. A massa atlética, súbito, somente ficou esquelética. O lépido marchador não mais, sequer se equilibrava.
Agora, quando ele mal se sustinha de pé e ao seu encontro esforçava-se por ir, o seu dono condoído tinha a imagem do filhote que lhe veio, ainda cheirando a leite, trôpego, em completo desequilíbrio, ao encontro.

Espectros

Data 14/jun/2004

     Espectros rondando. Como se pouco fora toda a vida desfiada por esses vale de lágrimas e de dádivas, de fadas e de enfados. Como se poucos, atos e omissões que lhes são creditados, de que passam a ser portadores enquanto forem. Grassam a granel pelos espaços físicos e imaginários, compondo um vivo arsenal de homens mortos. Atores vivos dessa grande e eterna epopéia dramática cujo palco é esta espaçonave Terra solta no abismo.
Espectros rondando. Certas vozes em surdinas percutindo decisivas na costura do destino de criaturas. Vozes indômitas, tortuosas, torturantes vozes. Ressoam nesses espectros o gosto de seus ácidos perdigotos, o pútrido de seus arrotos. Espectros expelindo seus arroubos, embora suas presas os saibam mortos. Todavia, se lhes figuram insepultos.
Espectros rondando. Plantados em praças, expostos aos olhos autômatos dos que vão e vem levando consigo espectros outros; espectros cuja história específica deles habitam, aos quais impossível ser indiferentes e que, por isso, nada podem fazer senão todos os olhares neles pousarem.
Espectros feitos portentos, portando ignotas histórias anônimas de milhões de almas perambulantes na consecução cáustica de sua própria história, calcinada pelo sofrimento de irem sendo espectros vivos, lutando contra a fome que ameaça torná-los completamente inermes.
Espectros rondando. Figurantes de um imaginário que sobrepaira em forma de paradigma, dado como digno de crédito, para espelhar o rumo altivo da vida. Compõem a cartilha do pensamento ideológico construtor de histórias, as quais pretendem sejam de face unânime, para que nada escape aos domínios de seus conhecidos cinco sentidos.
Figurantes de um imaginário cujas sentenças dogmáticas habitam o abstrato com suas cláusulas várias, contrárias, contraditórias. Na sua quietude beatificada, emplacam os sinais do trânsito a ser percorrido nas concretas vias de pedra, e lama, e plumas, e pátrios, e plácidos, e lumes e penumbras.
Espectros rondando. Quando à mesa certos simbolizados lugares vazios estão tomados. Quando em certas conversas são o referente das falas. Fetiches tornados para coletivas e heterogêneas causas. Mobilizadores e esteios de causas sociais justas, injustas, ingênuas, escusas.
Espectros de múltiplos e diferentes desejos. Que acendem e movem esperanças e desesperos.
Esperanças que mais que sete anos, toda a vida dedicam por impossível Raquel: espectro que as vivifica e as definha.
Esperanças cultivadas por espectros cujos estercos e acres águas artificiais são para que não pereçam, mas nunca alcancem.
Esperanças debulhadas em perdões, amores e ódios que se refazem de suas cinzas, para novamente amar, odiar e perdoar.
Esperanças feito pedras de rosário colhidas a cada graça: o apaixonado olhar amado; os inesperados agrados; a incondicional dedicação; a tácita e silente presença; a devotada ternura; a despida tolerância.
E os espectros das desesperanças feitas desesperos.
O desespero do desamor. O desespero da alucinante solidão. O desespero da incompreensão. O desespero do medo. O desespero do fim. O desespero de um fatal não ao que sempre fora sim. O desespero pânico da suspeita de que Deus não passe de um ardiloso e perfeito espectro.

Em cismar sozinho é o que há

Data 04/jun/2004

     Por vezes se vê tomado de um certo torpor de olhar o todo sem enxergar nada. Enxergar a visão panorâmica de um nada, feito puro pensamento puro. Ficar-se como se em hipnose. Desgoverno de juízo. A alma parece em absoluto estado de abstração.
Nada semelhante. Nem o sonho. Nem o delírio. Os sentidos embotados, recolhidos em si mesmo. Sujeito feito um jabuti entranhado em sua própria carapaça. Que é seu corpo cavernoso em cujos esconsos cabe seu pescoço portador de seu pensante miolo.
Torpor que encasula o homem que se põe em estado de cismar.
Aquele absoluto escuro claramente visto pelo matuto, quando matuto havia. De cócoras, chapéu arribado à testa, cigarro de palha da orelha à boca, isqueiro aceso pondo o fumo em boa brasa. Depois ficar ali tragando, olhando a fumaça, olhando para o nada que é um roçado cheio de mantimento esperando se livrar daqueles importunos matos. E ele pita e olha o nada, a fumaça, a brasa. Prazerosíssima síncope de si mesmo.
Por vezes, quando a si restituído dessa mínima e intensa desmiragem, pensamento na palma da mão da mente sã, põe-se a raciocinar. O raciocínio que é avesso a desbundes melancólicos sensoriais fica em estado de ponderabilidades na consecução da precisa clareza a essa ébria condição pela qual de quando em vez se entrega o homem, esse animal único com o dom da consciência, de domínio do raciocínio.
Entregar-se a estado letárgico, quando nada daí advenha, senão incônscias desrazões, omissões, fuga ao que a vida ostenta para ser desvencilhado. Não cabem ao poder do raciocínio concessões ao inconsciente vadio pondo-se a arquitetar desconstruções.
A natureza bruta em seu acabado estado de coisa pronta e transformável à mercê do ser único que dela não é dependente absoluto. Esse todo mágico poderoso vem sendo dado cada vez mais como quem da racionalidade humana depende. O que nela fora dádiva ao conforto desse especial filho-irmão começou a acentuar-se em ameaça de profundas e irreversíveis desgraças.
Talvez por isso mesmo, exercendo esse seu misterioso mágico poder incute, em muitos desses seus filhos-irmãos, o sentimento de intransigência defesa do que lhe é essência: suas matas e florestas, suas águas – rios, mares, os outros seres animais, dos quais, embora não percebam, é sim dependente e não apenas eles o são.
A urgência de desembotar-se e compreender que não há nenhuma absoluta independência na face da Terra, no incomensurável universo cósmico. Que em vez de desesperada e despendiosissimamente ficar a constatar estados desérticos e estéreis nos outros astros, devia o homem cultivar, preservar, cultuar sua mãe-irmã-amada Terra, seus mesmos irmãos com os quais dela são filhos e nela habitam.
Ah o homem. Esse complexo de nervos vibrantes que somatizam uma linguagem. Esse complexo de Édipo. Esse complexo de Electra. Esse complexo de neurônios prodigiosos produzindo. Produzindo angústias. Produzindo loucuras. Produzindo diabruras. Produzindo milagres. Escavando espectros vivos nos escondidos da cavilosa vontade de complexos desejos e insaciedades.
Pois então. Tais reflexões pululando em seu cérebro solto pelo devaneio racioemotivo subseqüente àquele esgar de entorpecimento lúcido em que a linguagem não é raciocínio, mas pura sensibilidade, tais reflexões pensam o mundo com razão crivando-se em pungente emoção.
O olhar no fosso do horizonte. O olhar no fundo do brilho do olhar da amada. O olhar esparramado no bem-te-vi que, na árvore, a seu modo, se protege do aguaceiro da chuva. O Olhar difuso perdido na flutuação da lua branca.
Olhares que cismam, que divagam, levando o homem à mesmice do sempre vivo desconhecido.