Esconjuro

Esconjuro
Data 30/jul/2004

     Soube que nada mais havia a fazer. Mas indignara-se ante tal condição. Não ter mais nada a fazer expunha limitada a sabedoria. Melhor: denunciava a franca condição pouco sólida de uma sabedoria incontestavelmente tão evoluída.
Da pedra lascada ao computador, não só erigimos a espinha e descobrimos e aperfeiçoamos evolutiva e criativamente a extensão de nossos membros, como os aperfeiçoamos, os potencializamos em desdobrados mecanismos, como a vários atribuímos a chancela de sofisticados.
É certo que contra a morte, há remédio ou antídoto algum que a detenha e a impeça. E talvez seja também certo que nem os queiramos mesmo, que a morte, dentre outras tantas funções, tenha como a principal máxima a preservação da vida. Que seria da vida, se a morte não lhe fosse uma perene e irrefutável fatalidade.
Todavia, por isso, a incessante busca de criar formas e mecanismos de rechaçá-la mais e mais. É isso. A vida é de combate à morte. Furtar-se dela, driblá-la a cada ato. Enquanto, tratar de fazê-la preciosa, extrair-lhe os prazeres e gratuidades que levem a tê-la como a dádiva concedida. E então, por fim, que a fatalidade baixe para a consumação do veredicto. E que, apaziguado, se possa evocar as aceitações poéticas: “Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer”. Pronta está a casa para habitares. Mais faria se, não obstante longeva a vida o quanto podemos torná-la, tão curto não fosse o tempo de só habitá-la.
As presas não se entregam. Morrem lutando, quando se vêem ante a iminente fatalidade de serem devoradas pela morte que as abaterá, para que seu predador mantenha a sobrevivência. Então seu instinto não lhe permite absoluta passividade. E dá-se a caçada, o confronto, a luta e o abate sob o último recurso da vítima: o berro, o grito, o urro, num misto de dor e amargor.
Urgia buscar saída. Não se podia admitir que tudo se fizesse como uma consumação programada. A intervenção gera situações, atos que podem criar o inesperado, o não-entrevisto. Como o acaso súbito exige a reorganização de atos, medidas, ações mediante o que se constitui como novo.
Pôr-se a pensar no modo como conseguiria impedir o dado como fim. Mais que fuga; mais que instintivo medo; mais que a animalesca relutância ante o feroz e faminto predador, havia nele uma intuitiva certeza de que não era chegada a hora.
De certo estava sendo posto a prova. Estava ante uma experimentação provocativa a ver qual seria seu procedimento.
Forjar sua defesa era necessário. Era necessário não perder nenhum minuto. Traçar planos vários, pô-los em curso, afastar aquela equívoca fatalidade.
Não se bastava ainda à vida. Tampouco ela a ele. Escavar seus fossos, levantar suas estacas, criar seus estratagemas.
Havia, sim, o que fazer. Havia de fazer, refazer-se para garantir seu fazendo-se.

Terra

Terra
Data 23/jul/2004

     A terra. Matéria feita de nada e de tudo. Que a tudo envolve, gera, vivifica e nadifica. A terra que acoberta pedras, ferros, zincos, prata, ouro. A terra que traga, engole os muitos artefatos putrefeitos por seus homens. A terra com seus tumores expostos e intumescidos, que, súbito, irrompem, expelindo seu pus incandescido e fervente, calcinando o que pela frente vai encontrando. A terra que com a água mantém essa imemorável combinação contrastante para a sustentável compactação desse planeta arredondado, soturno, refratário, diáfano.
A terra à mercê dos homens que nela fazem e desfazem; que dela dispõem; que a tratam como mera matéria inerte, perene, inacabável, eternamente fértil. A terra que se faz tijolo, argamassa para as várias e mutáveis moradas de homens. A terra imprescindível e única para a erva, a relva, as flores reais, avivando o prazer de existir aos homens nessas suas moradas.
A terra com seus muitos sistemas funcionais (ainda) desconhecidos de seus curiosos, atrevidos, teimosos e indômitos homens, aos quais lhes parecem perigosos inimigos todos os demais seres vivos que não sejam inofensivos e não lhes sirvam. Que consideram inúteis e inimigas as legiões de insetos. Inúteis e perigosas as muitas manadas de bichos tidos como ferozes. Apenas lhes servem pequenas porções de espécies para com outras tantas de pássaros comporem os zoológicos.
A terra que é única e insubstituível à condição de vida aos homens, os quais tão desprezivelmente a tratam, como se filhos a lhe dizerm que, se os pariu, tem a obrigação de os prover. E a terra, mãe maltratada, como toda mãe, os provê, embora tão mutilada quanto desprezada. A terra os provê da água doce potável à vida; provê-os do mantimento imprescindível à vida, que de sua própria entranha brota; que indiretamente está nos outros víveres que à manutenção da vida humana servem.
A sedosa terra. A maciez de sua textura. A indescritível temperatura de sua pele, de seu corpo. A terra mãe-pátria-berço de cuja atração parece fugir o homem quanto mais se sofistica em sua escalada civilizatória que cada vez mais o barbariza. Uma inútil destelurização suposta, pois que é terra e nela se converterá por mais pedra e cimento com que se reveste na ilusória pretensão dela se isolar.
O seu quintal de terra. Com seu gramado. Com suas plantas, árvores frutíferas. Com seu canto onde enterra seus animais. Em covas que ele mesmo escava. A terra aconchegante. Terra cujo contato, cujo hálito apaziguam. Terra cujo seio dá a seus cães mortos como o definitivo abrigo; a seus entes, a seus amigos, e que a ela se dará também como sua última entrega.

Contar e inventar histórias

Contar e inventar histórias
Data 16/jul/2004

     A prática de inventar histórias talvez lhe viera da prática de ouvir histórias. E o gosto e o prazer de contar histórias por certo é conseqüência desta prática de ouvir histórias.
No grupo escolar da sua infância, lhe acontecera a prática de contar e ouvir histórias. Nas duas últimas séries, a mesma professora fora a delicada e altaneira contadora.
Aos sábados. Depois do recreio. Ânimos refreados. Seus alunos postavam-se relaxadamente na carteira (da vez primeira explicara que não se confundisse relaxar com desleixar: dar vazão à alma, dar ânimo à solta imaginação; mas o corpo em postura respeitosa, própria de pessoas educadas.)
E entre simpática, amável e solene, arranjava na mesa o livro de que emanariam os inebriantes acontecimentos, recompunha as cortinas para as devidas luminosidade e penumbra.
Enquanto cadenciadamente ia dispondo o ambiente e os espíritos, captava as atenções recaptulando os acontecidos contados até o instante.
Histórias apresentadas de forma folhetinesca. A cada sábado um episódio. De certo outro recurso para fomentar a curiosidade da audiência. Pronta a sala, os olhos todos desejosos de saber como prosseguiria a história.
Então, em pé, vozes representadas e distinguidas, devidamente entoadas e entonadas, expressão facial e gestualidades do corpo com os braços e mãos simulando situações. E a todos embarcava no universo sagrado e mágico da imaginação.
Sua cristandade impunha-lhe a propensão a tomar para sua história a história da bíblia. E suas crianças, entre temerosas e aventureiras, metiam-se pelo vale do mar aberto pelo mágico bordão de Moisés, pelas façanhas de José no Egito.
Nas férias escolares, as histórias sabatinas povoadas de gente com auréolas, mantos barbas e cabelos longos ficavam suspensas. A circunspecta e altiva senhora ia descansar.
Era então que para algumas daquelas crianças entrava em cena outra contadora de história. E outras eram suas histórias, outras as personagens, outro o lugar e a hora.
Iam, em férias, para uma fazenda. A contadora dessas histórias era a avó cujo marido, o avô, a fazenda administrava.
A avó era magra e rústica. Dócil e brava. Risonha e carrancuda. À noite ia ao alpendre suspenso e aberto ao céu de estrelas e luar. Sentava-se em sua cadeira preguiçosa. Eles, pelo chão, sentados, deitados.
E começava um rosário de histórias povoadas de lobsomens, rios, matas, cafezais, onças, macacos, sapos, cobras, cães, bois, cavalos, roças, homens rústicos, simples, malvestidos, malcalçados.
Um mundo não menos mágico que o outro, porém inteiramente mítico. Mundo em que a invenção não ia além de si mesma. Mundo em que a ambiência, o espaço e as personagens, ainda que dotados dos mágicos poderes que a invenção lhes emprestava, eram dos receptores reconhecidos, tangíveis.

Desabafo

Desabafo
Data 08/jul/2004

     Teve um susto ante reflexão tão incômoda quanto circunstancial. Cumpria um hábito de rotina a que se aplica há muito e que hoje é recomendação médica como procedimento muito saudável.
E o instante da vida real formando aquele todo humano-urbano tecido por justaposição de enredos múltiplos, heterogêneos, feitos de zumbidos e roncos de motores automobilísticos; de vozes em modulações várias, de músicas, barulhos, ruídos; feitos de cheiros podres, pútridos, aromáticos, nauseabundos, fétidos; feitos de gente feminina, masculina e diferente: branca, negra, mestiça, gorda, magra, feia, bonita, sensual, elegante, irreverente, malvestida, compenetrada, espalhafatosa, meiga, solícita, solidária, ladra, violenta, bem-humorada, mal-humorada; feitos de automóveis, ônibus, motocicletas, bicicletas, aviões nos ares, todos portando gente como aquela; feitos de pássaros amontoados em praças, árvores, fios elétricos, pastando, voando, gorjeando; feitos de prédios cujas arquiteturas contemporâneas (algumas poucas antigas) com as praças, os monumentos e ruas compõem os cenários da viva ficção que a vida real faz brotar a cada manhã.
Este, um extrato da cotidiana vida humana feita de seus instantâneos continuamente mutáveis e infindos, cujos efeitos são fatos crônicos na sua permanente repetição; fatos inusitados, cujas inventividades instauram o novo, o que não se pensara possível; fatos cujos atos instauram o trágico feito de devassas, de catástrofes, de extermínios de toda ordem; feito de dilacerantes dores, lágrimas, mágoas. Fatos outros cujos atos são radicalmente antropocêntricos: a vida humana preservada sobre todas as coisas até o seu natural fim como a meta máxima e sem medida.
Vai um sujeito isso tudo ouvindo. Vai um sujeito isso tudo cheirando. Vai um sujeito isso tudo vendo. Vai um sujeito isso tudo degustando. Vai um sujeito isso tudo sentido.
Um sujeito a tudo isso vai vendo-ouvindo-cheirando-degustando-sentindo-pensando. E à medida que assim vai, também o acometem as indagações de empréstimo ou não, as quais vai, em contidas afirmativas exclamatórias, ponderando.
Então era isso. Tudo: infância, adolescência, juventude, estudos, amores, dissabores, desejos, buscas, expectativas, esperanças desaguariam nisto. A luta renhida a cada manhã, para ao cabo se constatar o em vão. Então era isso: nome, honra, dignidade rimando com anônimo, com perigo de fome, com fadado à marginalidade. Então era isso: o fundo do poço dando em água salobra; entrada permitida apenas no salão dos perdedores, que vencer já vem de berço, para o que pouco ou nada resolvem terços, para o que pouco ou nada servem as bênçãos, mas sim as grandes fortunas avessas a rimas importunas.
Então a vida era isso: matarmo-nos por um pedaço de osso; sucumbir os outros para que a medalha se pendure em mosso pescoço; sempre para esmola algum caroço, que isto dignifica o nosso topo.
Então a vida era isso: ao cabo, matar ou morrer, ganhar ou perder, amealhar ou ceder, se esconder ou acontecer, perambular ou se estabelecer.
Então a vida era para isso: risos, ríctus, ritos, ditos, grifos, elevadiços, delitos, mitos, místicos, míseros, ricos, por fim – sumiços.
E esse sujeito que a tudo isto via-ouvia-cheirava-sentia-degustava-pensava captava ao mesmo tempo o ritmo dos cães que pelas ruas buscavam sua comida, os cães que nas casas presas latiam em defesa de sua comida e os urubus, sobranceiros, sobrevoando e decerto a tudo vendo-ouvindo-cheirando, certos de que tudo embaixo acaba se putrefazendo em sua comida.

Construir/desconstruir

Data 04/jul/2004

     Construir é desconstruir, talvez seja a máxima máxima humana. Nada há que se faça que não decorra daí ou para aí se converta. E é certo que são atos intricados, conjugados e mutuamente necessários, embora contrários, que, afinal, sinônimos não prescindem de antônimos.
A crer no que sustenta até agora a ciência, assim fez-se com o bigue-bangue; a crer na bíblia, assim se fez com Adão e Eva: do Paraíso ao vale de lágrimas.
A desconstrução é ato dos que não construíram, que por razões ou desrazões opõem-se ao que fora construído. Todavia também desconstroem o construído os que se ocupam em construir.
Desconstruir para compreender a construção ocupa o cotidiano de concentrados trabalhos de cientistas e tecnólogos. Dedicam a vida a desconstruir a condição de ser de cobaias, cadáveres. Ainda que pressuponham como efeito uma construção de benemerência humana.
Quanto menos tribais, mais civilizados. E as urbes desconstroem formas de vidas primárias por viverem e conviverem povos diferentes numa nova forma de construção de vida humana, cujo efeito, a civilidade, é dado como a evolução global da espécie.
Então, construir implica desconstruir. Desconstruir pressupõe construir.
Guerra é ato dado como causa de se desconstruir algo em nome de suposta necessidade de se construir outra coisa. Deu-se a desconstrução da aristocracia imperial russa para se construir um Estado popular cujo resultado foi a conhecida União Soviética. Esta mesma, décadas depois, desconstruída para a nova construção de Estados já sidos. A desconstrução do império inglês de que resultou a construção de nova forma imperial: o moderno e pós-moderno império dos Estados Unidos da América
A construção de grandes capitais que implicam desconstrução de muitos pequenos. A desconstrução de múltiplas etnias e culturas que assim se fazem na construção das que são ostentadas como os valores dignificantes.
A desconstrução do artesanato servidor das simples e modestas necessidades pela construção dos complexos, sofisticados e excessivos objetos de mercado de consumo
A construção de um contingente bilionésimo de seres humanos em situações inumanas de absoluta pobreza e de miserabilidade pela construção de abastadas e acumuladas riquezas de alguns milhares.
Que há desconstruções construtivas, as há. As que vão na contramão da história; as que vão apontadas como contravenção; as que incomodam, porque desmodelizam, porque incluem, porque desobstruem; as infindas desconstruções que a linguagem popular descomprometida inflige à recatada e conservadora língua.
A construção de grandes hidrelétricas para a energia de que depende completamente esta sociedade contemporânea, desconstruindo a estrutura de rios cuja forma parecia sagrada, portanto, intocável. Desconstrói-lhes o leito, as margens, as matas ciliares, a feição, a imagem. Desconstrói povoados; desconstrói potenciais construções alimentares em terras férteis submergidas.
A construção de rodovias pavimentadas cujos bens sociais conseqüentes são inquestionáveis; cujas desconstruções de ferrovias e suas tradições sociais são deploráveis.
A construção industrial tão incensada por seus muitos benefícios nesta era do capitalismo de mercado de consumo, cujas desconstruções do límpido oxigênio, da vida de rios, das condições climáticas, são inaceitáveis.
A desconstrução intelectual, cultural, dos valores humanos tão caros à grandeza próspera do homem solidário, criativo e dadivoso, exatamente porque se construiu a democrática expansão da ocupação do bancos escolares em todos os níveis do sistema de educação.
Então, há a construção que desconstrói e a desconstrução que constrói.