Perigoso

Perigoso
Data 27/ago/2004

     Fora ali fazer um carreto. Transportar uns trens. Falava alto, senhor de si mesmo. Acabava se colocando como centro das atenções. Queria saber com quem falar. O que iria transportar. Tinha pressa. Muitos carretos ainda por fazer. Seu trabalho era muito requisitado, porque dava bom preço; porque fazia a coisa certa, com atenção, sem preguiça. Fora ali primeiro, porque sempre se entregara às causas sociais. Escola é um lugar sagrado. É onde se forma o sujeito com cultura. Educa o sujeito pra ser homem na vida. Prezava muito escola. Então ficou muito contente de poder pôr seus serviços ao atendimento da escola. Dissessem o que era pra se feito. Ia deixar o seu cartão. Era só chamar que daria preferência.
Homenzarrão. Um tipo galego avermelhado. Chapelão e botina à vaqueiro. Não, senhor! Entendia nada de vaquejar, boiada, embora tivesse morado a maior parte de sua vida no Mato Grosso. Todavia, lá foi outra coisa. Homem da cidade, nada com o campo. O traje atual é mais pra combinar com o trabalho. Porque não é um carroceiro qualquer. Não. Basta reparar. Ver o trato, a aparência do seu cavalo, o estilo e os adereços de seu carro. Sim, porque o dele não é uma carroça. Faz questão de que tudo seja no refino. E seu preço é módico. Nada dessa de cobrar mais caro. Faz melhor e com melhor equipamento. A diferença que isso faz está no fato de que não vence tantas solicitações. Ganha muito dinheiro fazendo carreto, porque sabe fazer bem feito. E aplica esse recurso na construção de casas para alugar. Com esse trabalho, já construiu algumas. Vai continuar. É dono de uma aposentadoria respeitável. Podia ficar zanzando por aí. Todavia quer ser útil.
Sempre teve atração por aquele tipo de trabalho. Ter um bom cavalo, de porte. É só reparar como marcha garboso pelas ruas. Mesmo com o carro pesado de carga. Mas, como disse, no Mato Grosso fora outro. Policial civil. Investigador. Respeitado. Temido. Com ele não havia contratempo. Não punha banca, entretanto era ali no cumpra ou cumpra! E ponto. Nem cara feia, nem falar grosso, tampouco tamanho. Se cuidava, é certo. Não ia metendo os pés pelas mãos. Fazia seus pensares e sismares antes pra não cometer besteira. Sentença dada, executava. Que o sujeito retrucasse, esbravejasse que fosse. Mas se tivesse sentenciado, estava consumado. Quase nunca precisou de auxílio pra lidar com rebeldias. Lá, era o afamado Perigoso. Os caras, ouvindo falar, se guardavam. Sabiam tratar de quem não se vendia. Com ele não tinha isso aqui ó; bola nenhuma. Não se vendia. Só queria o que era seu.
Um veículo de propaganda eleitoral passava, prejudicando seu destemperado e interminável discurso. Embarcou no assunto. Não ganha. Enganador. Não cumpriu um terço do prometido aos pequenos. Vivo no meio do povo. Não ganha. Não. Também não ganha. Tem caráter. É muito boa. Mas fica tirando da cadeia ou defendendo bandido, traficante. O povo não gosta. Perde por isso.
Já ia meia rua adiante marchada por seu garboso corcel, quando estacou-o. Ficou em pé, virou-se para trás e gritou que palavra de Perigoso era sentenciosa. Apostava no que dissera. Esperou por alguns segundos calado. Como não recebeu nenhuma resposta, sentou-se e autorizou o macho a reiniciar sua marcha.

In memoriam

In memoriam
Data 13/ago/2004

     A arte, o universo que o arrebata, o objeto de suas inventivas, invectivas. Algumas manifestações dela, como a quem assim por ela se vê tomado, mais o atraem. Destas a menos sedutora da escala preferencial é a pintura, que, todavia, aprecia como um amador semiestudioso e um colecionador de réplicas, porque não-pertencente à categoria dos abastados para a aquisição dos originais, e porque radicalmente contrário à exorbitância inexplicável dos preços que lhe são atribuídos. Nada justifica isso. O trabalho artesanal; o tempo dedicado à construção; os custos da matéria e do material empregados; engenho e arte do artista. Nada. O preço é um disparate, um despropósito que os ricos colecionadores sustentam. Cifras expressivas em muitos mil reais, em altos dólares.
Entretanto, tem o gosto de quadro exposto em suas paredes. Então, pendura os seus Picasso, Monet, Degas, Tarsila do Amaral, Mondrian, Lasar Segal, Bosch, Brugel, Velásquez, Kandinsky, Portinari, Miró…
O efeito poético das figuras estampadas pelos papéis impressos não lhe parece ser diferente. A obra ao receptor é o resultado que seu todo instaura ante a emoção estética despertada naquele. Os detalhes técnicos, organizacionais importam aos especialistas aos críticos. Então, conceber e avaliar o conjunto desde a inteireza das partes e assunto para eles. O apreciador comum pragmático gosta ou não considerando o todo que os seus sentidos captam. Portanto, um quadro em reprodução pendurado na parede não causa menos sentimento de beleza e enlevo do que o original, com seus detalhes ressaltados, como o presumível frescor e vivacidade de suas tintas com suas cores.
Mas suas paredes, aparadores, piano, cômodas, prateleiras se enfeitam não só com esses quadros pictóricos. Intermedeiam-nos nas paredes, suprem-nos, nos móveis, pôsteres de fotografias várias. Talvez seja uma forma de imortalizar seus mortos e presentificar seus vivos.
Então, à vista das perdas pouco espaçadas de seus estimados cães, decidiu dedicar-lhes um espaço. Tê-los-ia também ali, em pôsteres, rememorando dias, evocando episódios, amorosidades recíprocas. A fidelidade canina. A indefectível permanência a seu lado onde na casa estivesse. A vigilância incansável. As alegrias familiares das brincadeiras. E os entristecimentos e cuidados quando das doenças, tanto deles quanto dos da família. As consternações, quando fora a hora da morte.
Tratou de buscar nos álbuns uma fotografia bem representativa de cada um. Encontrou uma Laika, adorada dobermann, em cujo pescoço seu neto primogênito estava atarracado. Um Bolinha fujão, em que seu filho caçula, em plena infância, ajuda a mãe a lhe dar banho. Bidu, dulcíssimo, setter cujas largas orelhas seu neto segundo parece quer esticar ainda mais. Zezão, o puro pastor da família paparicado, a seu pé em postura majestática.
Pronta e posta, vigorava a galeria de pôsteres dos idos cães da casa. Faltava a de Esnupe, um querido bóxer. Os álbuns não acusavam nenhuma. Sentia-se meio ingrato. Incomodado. Como fora possível escapar-lhe uma fotografia dele.
Sonhou um dia com Esnupe, de óculos, consultando na enciclopédia Larousse o verbete Literatura. Nítido e impressionante sonho. Esnupe desviava os olhos da enciclopédia para ele, dele para ela.
Não resistiu. Foi à enciclopédia. Apanhou o volume devido. Lá estava marcando a seção Literatura uma fotografia em que Esnupe repousava em sua predileta poltrona.

Agenciamento de adoções

Agenciamento de adoções
Data 06/ago/2004

     Surpreendeu-se com a propaganda insólita a olhos não desatentos aos fatos do mundo, como considerava os seus, à parte algum ranço de imodéstia, se, em auto-análise, assim o fosse.
Aquilo, bem entendido, depois de separados os escolhos e os meandros semeadores dos subterfúgios lingüísticos, necessários para refrear possíveis sustos ou reações contrárias, era o ressurgimento da transação comercial de gente.
Vendiam vidas humanas pela internet. Agenciadores desse tipo de negócio, talvez ostentando um certo altruísmo por dedicarem-se a essa atividade benemérita de intermediar a concessão de posse entre geradores naturais de infantes e adolescentes que, por alguma razão, os rejeitam e adotantes que os adquirem por razões não diferentes.
À surpresa, veio o susto. O tráfico. Não há nada que ao homem escape. Tudo que se reverta em dinheiro, lucro, poder.
A civilização instituiu a escravatura. Homens donos de homens. Os gregos e romanos com seus servos e servas. A magnífica rica pobre África desafricando-se com a concessão dos seus aos poderosos europeus adotadores escravocratas: “Mama África!”
O mercado persa de negros e negras expostos à venda. Os melhores espécimes procurados em exímios exames. Bons dentes. Rijos e saudáveis corpos. Opulentos seios e nádegas generosas. A máxima perfeição corpórea possível para a pródiga produção benéfica ao avantajamento dos bens do adquirente proprietário.
Tratava-se de escravos para o trabalho. O tráfico de escravos para o trabalho.
Todavia, a vida, não obstante antiqüíssima, rediviva, se inova, se renova. E o que resulta exulta, revolta apavora, estupidifica.
A evolução descobriu que gente, em se querendo, também se fabrica. A inseminação artificial trouxe ao homem a láurea de um semideus capaz de, semelhantemente, tomar da costela contemporânea e gerar gente. Basta que haja, como tem avidamente havido, semens e barrigas de encomenda.
Então, gerar gente, há algum tempo, deixou de ser da exclusiva conveniência da mútua vontade e decisão de um homem e uma mulher amantes e desejosos de filho. Deixou de ser em conseqüência de engravidamentos indesejados, quer por erro e não-uso de preservativo, quer por estupro.
Mas gente gerada assim compunha famílias ou orfanatos. Adoção fazia-se sob um clima de natureza afetivo-amorosa humana.
Gente na prateleira, nas gôndolas. Objeto de transação legal sob o rótulo de adoção. Vai um empreendedor à agenciadora de boas peças adolescentes ou infantis para a aquisição, diga-se adoção, de um lote desses para fins decerto pouco ou nada altruístas, afinal, adquiriram um mercadoria não para servir, mas para servir-se.
Vai um sujeito ao agenciador de guris e moleques órfãos, para abastecer seu fornecimento de órgãos vitais viçosos ao mercado cuja demanda faz-se um filão promissor. A adoção humana como mais uma promissora atividade lucrativa.