Recital

Havia sofrido algo sério. As pessoas em seu redor. A cabeça inteiramente no lugar. Pensava com clareza. E sabia quem ali cada um era. Via a todos. A sucessibilidade de pessoas que por ele passavam. Que ficam algum tempo a olhá-lo sem nada dizer. Ou dizia, ele, porém não conseguia nada ouvir. Demoravam-se mais alguns. Seus irmãos permaneciam, ora juntos, ora um, depois outro; outra. Falam-se entre si. Ele, porém nada ouvia, não obstante envidasse todos os sentidos. Nem mesmo conseguia a leitura labial. Coisa em que, quando moleque, era perito. Lembra-se que das apostas que travavam para ver quem não conseguiria errar a leitura, não perdia nenhuma. E o fato mais sensacional: aos assistirem um filme de cangaceiro. O nome não lhe ocorria. Todavia, cenas e atores pululam-lhe ali agora com vivacidade. Deu alguma pane. O som sumiu. Sucediam-se tão-somente as cenas. E aconteceu justamente numa cena de amor, de quase sexo explícito. As falações mudas do casal em decorrência do ato (quase todas lidas por ele) sem nenhuma reclamação, não foram ouvidas pelo público. Que, porém, tão logo diante de nova cena, pôs-se aos conhecidos e continuados protestos. Em meio a eles, surdiu uma voz (que nunca conseguiu descobrir de quem, ironia do destino: tão bom leitor de lábios) praticamente exigindo que ele fosse conduzido a ler ante um microfone a fala das personagens. A idéia deve ter parecido tão salvadora aos donos do cinema, seus velhos conhecidos, que, quando se deu conta perfeita de si mesmo, lá estava ele diante do microfone esperando a película ser ajustada para que começasse a sua transcrição oral da mudez pronunciada pelos personagens na tela. Sua eficiência, como decerto deveriam saber todos que ali estavam indo vê-lo, abrira-lhe convites de excelentes trabalhos em áreas afins. Tanto que escolher lhe fora algo muito difícil e mesmo pesaroso, já que com alguns muito simpatizava, mas somente um poderia escolher, pois tratava-se de ferrenhos concorrentes.
E agora, Santíssimo Deus!, exatamente numa situação em que, talvez mais do que nunca, tanto precisava daquela habilidade, não a conseguia. Parecia ouvir o zumbido das vozes, o sussurro de vozes muitíssimo refreadas, mas imperceptíveis, ilegíveis. A movimentação era moderada, entretanto contínua, naquele ritmo demoram mais uns, pouco outros.
Não sabia exatamente por que, mas tinha certeza de que não estava morto. Talvez, pela ausência geral de choros, de lágrimas furtivas ou explícitas. Talvez pela expressão geral. Não vinham risonhos, tampouco excessivamente graves. Aparentavam cordialidade entre si e olhar com discreta comoção postos nele. Sem muita fixedez, todavia. O cenário, de fato, não era de velório.
Mas também sem exatamente saber por que, não entendia que fosse igualmente de quarto de hospital. A começar pelo fato de que se percebia numa posição de quem está em pé. As pessoas aproximavam-se até um limite imaginário que faziam-nas guardar uma pequena distância a ele. Mas ninguém às suas costas. Atrás das quais não o que as amparasse ou as protegesse. Não era parede. Uma cortina marchetada, em tonalidade azul-clara, trespassado-a de esguias formas brancas esgarçadas como nuvens.
Então, num dado momento, não curto, vivia a impressão de que toda aquela gente o entrevistava. Ele lia as perguntas, já agora não pelos lábios, mas pelos olhos. Os olhos deles diziam-lhe, reparou, quando prestou fixamente a atenção em uma mulher cujo olhar pedia-lhe respostas convincentes e agradáveis. Equivocados, talvez, invertendo os órgãos, pois, não porque lia (lera) lábios, sabia ou podia ler olhares. Mas tal era a insistência que começava (com certa facilidade) a compreende-los.
Não atinava com as indagações, todavia. Eram disparatadas. Agora os olhares moviam-se rapidamente, a saraivar-lhe de perguntas e tantas e tantas, numa velocidade vertiginosa. Atendia a um, já lhe fustigava outro, um outro. Até que uma outra mulher, em passos de modelo, lá do fundo do salão veio vindo, saias esvoaçantes; veio vindo, cabelos esvoaçantes; veio vindo olhos negros nele pregados; veio vindo, boca semi-aberta em batom vermelho; veio vindo, seios volumosos oscilando e diante dele estacou. E após, o átimo em que tudo dela era movimento se imobilizou, entregou-lhe o livro.

Tratava-se de seu famoso poema que interpretaria em recital há horas esperado, num repleto recinto, por um público que lhe era todo expectantes olhares.

Indicação

Em riste, o indicador dá o horizonte.
Como uma seta rombuda mágica apontando a meta, dimensionando o espaço a se trilhar, vago espaço, o nada intacto. Ao qual a peregrinação vai desfazendo com súbitos e sucessivos eventos que, ao final, será o tudo tecido.
Em riste, o indicador denuncia o esconso, o clandestino, o desconhecido. Dá atraiçoadamente, comparsamente, a público o que à mercê de seu querer se fizera em confiança. A qual – quantas! ante tal gesto se desmorona.
Em riste, o indicador reduplica o discurso acusatório ferindo, dilacerando, muita vez, muito mais que palavras que se apagam tão logo pronunciadas, mas que ainda ali ficam percutindo na persistência reduplicativa daquele dedo mordaz.
Em riste, o indicador na palma da outra mão espetado, pedindo, propondo a suspensão de algo que se processa. Ato a que advêm reações várias. Mas que quase sempre causa grande expectativa. Sobretudo porque ali se enrista uma divergência, um reparo, uma questão.
Em riste, o indicador levado aos lábios estabelecendo o fim de algum barulho. Ou a preservação do silêncio. Sinalizando que ali não cabe a voz alta ou mesmo não cabe a fala. Que de humano convém apenas o silêncio. Que tão-somente se suporta o rumor, de todo irrefreável, da natureza:
“– Psiu!… Não acorde o menino. /Para o berço onde pousou um mosquito./E dava um suspiro… que fundo!”
O indicador em riste indicando na árvore o pássaro desabitual; não árvore, indicando a singularidade de um fruto; na árvore, indicando a presença da primavera; indicando, na árvore, a presença do inverno; indicando a presença de estranhos hospedeiros; indicando, na árvore, a acentuação de sinais dos idos anos.
O indicador em riste indicando, no azul entrecortado de nuvens, o celestial bailado dos urubus; indicando o cortejo cadenciado de paturis pipilando sua migração; indicando o casal de arara estridulando sua passagem; indicando a miríades de andorinhas borboleteando sua grácil dança branca-azul.
O indicador em riste indicando certos arco-íris ainda capazes de maior boniteza que os costumeiros.
De noite, o indicador em riste indicando certo singular efeito que a mesmice da lua sempre traz a quem procura ver. Em riste, indicando a melhor nitidez de alguma constelação. Indicando a precisa harmonia do Cruzeiro do Sul. O irresistível fulgor de Vênus. O apaixonante brisbrisar do brilho de Aldebarã. O magnífico clarão da estrela cadente explodindo feito fogos de artifício.
O indicador em riste flexionando-se pausada ou febrilmente, na indicação de um gesto chamativo já em si mesmo admoestador.
Os muitos recursos indicativos a que se presta o indicador numa partida de futebol: os vários sinais táticos do técnico. O sinal de imperiosa substituição de um jogador dentro de campo atendido e diagnosticado sem condições de continuar no jogo.
O indicador em riste que, combinado com o polegar, sinaliza a violência deflagrada a tiros.
O indicador em riste oscilando pausada, cadenciada ou sofregamente na indicativa negação coibitiva em múltiplas situações: nãos que muita vez calam mais fundo que os ditos a viva voz.
O indicador que, autômato, habilmente se flexiona numa perfeita combinação com o polegar e o médio, fazendo-se o motor da mais notável mimetização humana: a linguagem escrita. Que se reduplica no pincel. Que se reduplica na agulha. Que se reduplica no bisturi.
O indicador que, levemente inflectido, preme o mouse que o estendeem sua seta, fazendo surgir, na mágica tela, os webs das virturealidades.
O indicador que em riste ou inflectido toca nas feridas. A ferida do corpo, dorida, aliviando-se ante ao bálsamo que, carinhosamente, o indicador lhe fricciona.
O indicador em riste que, mordente, a ferida da alma toca, fazendo-a sangrar e avivando-lhe a chaga que não cicatriza, pois, quando menos se espera, o indicador em riste, feito um Sísifo, de novo a acutela com sua rígida pedra.
Com seu indicador em riste ou flectido o homem se traduz, se conduz e se transforma a si mesmo e ao outro, a cujo todo se denomina de natureza.