Antes de tudo, sobreviver.

Os pássaros do quintal da casa, de uns tempos aos de agora, logo perceberam que havia a eminente necessidade de nova adaptação. Não que houvessem árvores desaparecido. Nem haviam sido mutiladas por vis podas, como por aí se tem visto. Tampouco descaracterizadas por modelações que as desconfiguram, submetendo-as todas ao mesmo padrão formal, como se fossem, não natureza viva, mas mercadorias em série fabricadas para o comum gosto consumista instituído pelo mercado.
Não. Lá estavam elas vivendo seu tempo. Todas já de há muito adultas amadurecidas, expostas ao transcorrer dos ciclos, com suas cascas crestadas, suas folhas mutantes, seus galhos sempre ávidos de sol e ar.
Cada uma na sua. E todas, a seu modo, aconchegantes. Onde muitos deles residiam. Habitação única, coletiva em que harmoniosamente se acomodavam, construíam seu ninho para a procriação. Confortável e pacificamente continuavam ali tendo seus filhotes em sólidos e seguros galhos entrançados, emaranhados, enfurquilhados.
Podiam, entre instintivamente vigilantes e com certo sossego, explorar o gramado do quintal, onde sempre se encontra alguma comida. Basta entregar-se ao trabalho de pastagem e ir descobrindo-a. A ausência de gatos na casa dava naturalmente maior tranqüilidade e segurança. Havia cães. Entretanto estavam pacificamente acomodados à convivência com eles. Indispunham-se apenas com algumas ousadias maiores de certos pássaros, os pardais principalmente, mas também um e outro bem-te-vis, uma e outra juritis. Esses aventuravam-se até os comedouros deles a fim de surrupiar algum resto de ração ou de migalhas. De certo tratava-se de uma questão de honra. Aqueles atrevidos pássaros iam longe de mais. Havia que enxotá-los. Às vezes, em ocasiões dessas, o ímpeto canino sobrepunha-se à rapidez das asas, resultando quase sempre em morte instantânea de pássaro.
Afora esses desastres, que, convenhamos, eram provocados por demasiadas insolências, a vida, para os pássaros dali, corria tranqüila. Dispõem, inclusive, de cochos de água limpa para beber, onde alguns atrevidos e degenerados, mormente no verão, põem-se a tomar banho. Principalmente os pardais (sempre esses pardais!).
Mas a pacata vida pássara sofreu abalo. Seu risco aumentou grandemente. Deu-se o rápido crescimento de uma indomável, irriquieta, atletíssima pastora. Pássaro a pastar no quintal, uma temeridade sem precedentes. Pois se ela quer apanhá-los mesmo estando eles seguramente instalados em galhos fora de seu alcance! Late e salta freneticamente na direção deles. Beber água tornou-se o maior transtorno. Somente quando ela desmaia num canto do quintal de tanto sono. Assim mesmo é preciso cautela. Ela é sorrateira.
Agora, pense-se nas iniciações de vôo dos filhotes. Tem sido uma baixa absurda. Quase nenhum lhe escapa. Apanha-os num átimo. O quintal, tão extraordinário para essa prática ficou completamente impossível.
Há pouco uma teimosa pomba-mãe arriscou-se com dois filhotes. A cadela apanhou um. O outro, enquanto o irmão era agarrado, desesperadamente encontrou, rente a um canto dos muros, um monte de palmas secas no qual se entranhou. A cachorra, que à presa não devora, apenas pega-a pelo prazer de vencer, esteve ali farejando.

E a pomba, logo descoberta pelas pessoas da casa, passou a ficar ali. Mal lembra já um filhote. Está toda emplumada e, no entanto, quando percebe não haver perigo, rapidamente sai de debaixo das palmas para pinicar umas migalhas e bebericar água que passou a encontrar nas proximidades. Como não mais arriscou a voar, parece ter desistido de encorajar-se para isso e acomodou-se àquela vida enrustida e de migalhas milagrosas. Preferiu, ainda escrava do medo, ir sobrevivendo, a arriscar o seguro vôo que as asas não mais imberbes lhe garantem. Por certo a remoção do monturo de palmas lhe trará o pânico deflagrador da coragem que a arremessará para sua vida de pássaro.

Ansiosas

Duas senhoras. Idosas. Viúvas. Sozinhas. Cada qual com suas morrinhas. Enternecem-se. Adoecem. Melhoram. Adoecem. Nada devem à imagem estereotipada: já meio curvadas, desmusculadas, indesejável e irrefreável barriga, rosto em rugas do tempo e das, agora, mais acentuadas rusgas.
Matam o tempo, que mata-as com a morfina rotina cujo ritual se inicia já bem de manhãzinha. Acordam com os pássaros. A uma delas de sono atormentado, muitas vezes aos pássaros se antecipam um ou outro longínquos galos. Como fora menina vivida em sítios, fazendas e ali, em pleno centro da cidade, fica com a desconfiança de que sejam puramente imaginários. E aí fisga-lhe mais ainda o  atormentante medo de perder-se de si mesma, tornando-se noutra completamente desconhecida de seus entes queridos. O que sabe muito bem, porque viu acontecer com mais de uma amiga sua. Porém, afiançam-lhe que sempre há alguns quintais mais à margem da cidade.
A outra não. Dorme pesadamente. Sono tão de pedra que raro lhe é ouvir o relógio dos bem-te-vis, a barulhada dos pardais. Decerto de tanto ouvir a outra dizer, pensa ouvi-los às vezes. Mais parecem povoar, isto é, incomodar seus sonhos. Estes, sim, são por ela bem vividos, longos e constantes. Venturosos. Raros os ruins. Tão bons que fica deprimida um bom tempo com seu travesseiro (e isso às vezes perdura o dia inteiro) por ter acordado.
Durante o desjejum sempre a sonhadora é quem mais fala. A outra fala pouco. Escuta muito. Sonos intermitentes, achaques diversos, o que a empurra a muitos médicos. A outra com a audição bem conturbada (imaginem! escuto muito bem) fala, fala, fala. Fala quase irretorquivelmente, dos seus sonhos. Sempre grandiosos. Ela, em todos, a figura de destaque. Quando anunciados como ruins, resume-os de forma peremptória e obscura. O que a outra logo entende ter havido insucessos para a narradora-personagem. Assim consomem café com leite pão e manteiga já preparados pela que sai da cama sempre antes do sol.
Caso não haja ida programada a médico ou dentista pela manhã, quando ambas vão, embora apenas uma irá à consulta, sentam-se à varanda e põem-se a passear pelos jornais assinados pela casa. Cada qual com um. Passados os primeiros momentos da persecução, quase sempre em acentuado silêncio, a que sonha encontra algo que julga conveniente ser lido em voz alta, para que a outra o saiba, mesmo que essa nunca sinalize estar interessada em ouvir, pois, embora a outra se ponha a ler em voz alta, continua firmada no jornal que perscruta.
Na verdade, a que se põe a ler em voz alta, com o jornal segurado com as duas mãos e aproximado aos óculos, sequer repara se outra lhe está dando a devida atenção. Vai lendo, lendo, lendo. Enquanto isso, aquela, talvez para impedir como pode a atrapalhação, lê movendo os lábios numa leitura semipronunciada que, por certo, de alguma forma, assegura-lhe a concentração. A outra continua. Vai de uma a outra das notícias que certamente selecionara para aquele ritual quase diário. Praticamente todas elas se referem a roubos, assaltos, assassinatos, mortes.
Vem, depois do almoço, o jornal televisivo a que a sonhadora se dedica com a televisão em alto e bom som. Basta ver um fato daqueles, um desastre qualquer, que se põe a chamar insistentemente a outra que, se chega atrasada, ouve a lamentação irritada daquela. E depois do programa de receitas, a que a sonhadora firmemente assiste do mesmo modo chamando a outra para alguns pratos diferentes e se lamentará irritada, se ela (que quase sempre assim procede) novamente chegar atrasada, vem a novela da tarde.
A esta também ambas se entregam. Mas também com a novela, tanto à de agora como às da noite, acontece algo semelhante ao que com a leitura dos jornais. A sonhadora, durante toda a novela fala para as personagens, fala das personagens, dá gritinhos de torcida ou de receio, prognostica ações que cometerão as personagens. A outra, numa poltrona mais bem afastada a tudo caladamente assiste.

Novela finda, a sonhadora, logo se entrega aos preparativos para dormir, dizendo-se tomada de sono. A outra ficará mais. Um outro programa, ou filme. Irá, assim, aquecendo o início de seu intermitente sono com pequenos cochilos ali na poltrona.