Heróis/filhos

Temporada de neto na casa. É quando a severidade baixa a bandeira e o território ostenta uma invisível, mas pressuposta inscrição no portal: aqui mandam os netos. Eles parecem não ver a hora de chegar tais momentos. Argutamente sabem que os despotismos paternos se retesam.
A naturalidade do cotidiano é pródigo em regras. Por certo percebem que quanto mais crescem menos podem. Mais lhes exigem. A vida vai sendo, em quase todas as vinte e quatro horas, de aprendizagem, quanto mais aniversário fazem.
Estímulos, ensaios com erros e acertos, exigências, castigos aos denominados desobedecimentos, necessidade de solicitar concessões, aceitar não-concessões. São procedimentos por meio dos quais vão desde sair das fraldas para o peniquinho, deste para o vaso sanitário; da comida na boca para a auto-alimentação, a que está condicionada a concessão dos cobiçados chocolates; do usar e depois guardar o brinquedos, admitir a divisão dos mesmos e dos demais objetos com os irmãos. Vão cada vez mais conhecendo a esfera das obrigações, a qual infelizmente deve ser alternada com os prazeres que pareciam então quase exclusivos. E disparam as descobertas. Também elas abrindo aos prazeres, permitidos e proibidos e às obrigações mais e menos exigidas. É a lei, diz a canção de um contemporâneo compositor da música popular brasileira. A qual vai mais e mais desmeninizando-os.
Daí que, enquanto meninos são, estar nos domínios dos avós, é ter, provisoriamente suspensas, quase todas a incômodas obrigações, os contundentes nãos, as exigidas contenções. Ali se pode. Ali se tem. Ali as transgressões beiram os deslimites. Ali se vêem mesmos transmutados em seus prediletos heróis. Tornam-se os verdadeiros heróis daquele território. Heróis que mais exigem do agem, mais mandam do que fazem, mais são assistidos do que salvam. E se no lugar existem bisavós aptos, amplia-se ainda mais sua assessoria, torna-se maior o quadro de fâs. Ídolos insubstituíveis, plenos de energia e agilidade vão arrastando atrás de si aquele contingente de devotados e seduzidos anciões, quase todos esbofados pelo cansaço que lhes imprime a performance de seus batmans, super-homens, homens-aranha, hulks…
São heróis que devem causar inveja aos seus heróis, pois são únicos. Não têm de padecer daquela triste sina da duplicidade. São heróis pura e simplesmente. Não precisam de que os outros (e nem muito menos eles próprios) se vejam em perigo iminente para que se transformem em heróis. Precisam apenas ser.
São o centro da casa. Durante sua estada tudo gira em torno deles, desde quando acordam até o recolhimento, que não se faz tão cedo e não sem muita argumentação. Nesse livre território brinquedos abundam. Há os de que gostam muito e que quiseram ter. Há os que não solicitaram, mas que, encontrados, passam a querer, mais uns, menos outros. Almoçam e jantam diante da tevê, assistindo a seus desenhos preferidos, com direto a refrigerante em todas as refeições todos os dias e sendo incensados a comer só mais um pouquinho.
Vão para o quintal devidamente paramentados. Vestidos de capa e máscaras, correm, saltam, trepam nos arbustos. Que por algum tempo são ora cavalos, ora naves espaciais, ora altíssimos prédios nos quais grudam sua potente teia. E tornam ao chão sempre em perseguição aos vilões, via de regra um ou dois dos avoengos, que, intimados, na condição de vilão ou vilã, para lá se deslocam. Levam tiros, são enredados em inquebráveis teias, são retidos pela heróica força do bem e conduzidos à prisão pública onde deverão passar os restos dos seus dias.
Quando se vão, a casa volta à sua pacatez. Os avós se reencontram com sua enxaqueca, sua artrose, sua crônica indisposição, seus achaques, seus remédios, a vidinha sem graça com sua mesmice de novelas, missa e macarronada dominicais e o fantástico global show televisivo.
Eles se vão decerto não menos abatidos. Pois também tornam à mesmice, ao território onde já não são mais freqüentemente heróis e sim mais exigidos, vigiados, admoestados como o são os vilões. Ali, quanto mais passa o tempo, mais vão se rasgando suas fantasias e eles vão sendo cada vez mais filhos.

Freguês

A considerá-los assim, há-os por aí afora. Não é o freguês pertencente a determinada paróquia, cujas ações, hábitos pautavam-se levando em conta as posições decididas e avalizadas pela sua igreja, sua freguesia. Esse freguês parece ter definitivamente extinguido. Não é tampouco o outro, ainda em vigor, mas também já em franca descensão. E esta não apenas pelo desuso, porque, ao contrário daquele, os traços essenciais de seu significado permanecem, mas pelo estatus lingüístico. Denominar de freguês ao comprador habitual, tornou-se antiquado, fora de moda e “desvaloriza” a loja, ou a butique, ou o supermercado, ou o shopping. A denominação em voga é “cliente” em contrapartida a “empresário”, aos que vendem, ou mesmo promovem a venda. Mesmo a esses, que vivem desse negócio, já é depreciativa a palavra negociante. Ninguém abre um negócio, como há pouco ainda faziam. Desde um tempo a essa parte abrem empresa. Tampouco abrem filiações ou representações, mas franquias.
É freguês com um outro significado, mais especificamente atualizado. Diz respeito à família que lida com o caso. Freguês é um assíduo sujeito, decerto pertencente à massa dos desajustados por insujeição ou desujeição.
É um pedinte cujo significado mantém do tradicional pedinte tão-somente o sentido do ato de pedir. Nada de sacos encardidos, bornal, ou sacolas a tiracolo. Nada da figura esquálida. Cabelos e barbas crescentes, emaranhados e endurecidos pela sujeira. O encardido paletó que, como a camisa e as calças, vai enegrecido pelos vários tons de sujeira. Que chegam e deixam ficar pesadamente o dedo na campainha, cujos extensos esganiçados repetidos irritam a casa. E que solicitam determinado tipo de mantimento para a composição de sua miserável cesta básica.
Nada do embusteiro pedinte a quem serve apenas dinheiro. Aquelas histórias hipócritas de que está desempregado e o gás se acabou e as crianças sem leite. “Cinco o seis real” vão ajudá-lo a completar a quantia necessária para poder não deixar os filhos com fome. E o otário, tomado de compaixão, imaginando as pobres criancinhas desamparadas e chorando de fome, a coitada mãe chorando junto, corre à burra da casa e assaca a grana salvacionista. Uma ou duas semanas depois, outro. Simula sentir-se humilhado por aquele ato, todavia, prefere-o a roubar, porque é pobre, mas honesto e crente em Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo acima de tudo. É que veio à cidade, mora fora, ficou mais de uma semana de porta em porta em busca de emprego, qualquer que fosse, o senhor mesmo não quer uma limpezinha na calçada, no jardim (a calçada está limpa, o jardim, visível, devidamente aparado)? Precisa voltar, esperam por ele mulher e cinco crianças, que infelizmente vão ouvir dele o que já ouvem há algum tempo. “Um cinco real” ajudaria na passagem.
Esse é um outro freguês. Nada de subterfúgio. Mora nos recantos das imediações. Nada de imundícies. Aparência comum. Vestido, calçado. Já na primeira vez, declara não querer dinheiro e todas as vezes que vem declina o que quer comer e beber. Um dia pede café com pão e manteiga. Outro quer um sanduíche reforçado e um refrigerante. Num outro (e nessa ocasião apresenta sinais de semi-embriaguês) requer comida, isto é, um prato feito. Às vezes percebe que a calçada está tomada de folhas etc., que as árvores estão com os galhos muito reclinados à rua ou à calçada. Quer vassoura e instrumento de corte para fazer a limpeza e as devidas reparações, pois acha que passou da hora de se fazer ali uma reparação geral.

Neste inverno quase em branco, apareceu, num raríssimo dia de frio. Pediu uma calça jeans que lhe poderiam dar para enfrentar o frio, que suas calças eram todas muito finas. Arranjassem também uma blusa quente que já andava fora de moda, que agora estava morando na barranca da lagoa e lá o frio é maior. No bojo disso tudo, acaba sempre levando um de comer acompanhado de refrigerante.

É o freguês dali. Um bairro residencial, que nunca fora nem é uma freguesia, que nada comercializa ou empresaria. Um freguês que pede, embora não seja pedinte.