Desabafo

Desabafo
Data 08/jul/2004

     Teve um susto ante reflexão tão incômoda quanto circunstancial. Cumpria um hábito de rotina a que se aplica há muito e que hoje é recomendação médica como procedimento muito saudável.
E o instante da vida real formando aquele todo humano-urbano tecido por justaposição de enredos múltiplos, heterogêneos, feitos de zumbidos e roncos de motores automobilísticos; de vozes em modulações várias, de músicas, barulhos, ruídos; feitos de cheiros podres, pútridos, aromáticos, nauseabundos, fétidos; feitos de gente feminina, masculina e diferente: branca, negra, mestiça, gorda, magra, feia, bonita, sensual, elegante, irreverente, malvestida, compenetrada, espalhafatosa, meiga, solícita, solidária, ladra, violenta, bem-humorada, mal-humorada; feitos de automóveis, ônibus, motocicletas, bicicletas, aviões nos ares, todos portando gente como aquela; feitos de pássaros amontoados em praças, árvores, fios elétricos, pastando, voando, gorjeando; feitos de prédios cujas arquiteturas contemporâneas (algumas poucas antigas) com as praças, os monumentos e ruas compõem os cenários da viva ficção que a vida real faz brotar a cada manhã.
Este, um extrato da cotidiana vida humana feita de seus instantâneos continuamente mutáveis e infindos, cujos efeitos são fatos crônicos na sua permanente repetição; fatos inusitados, cujas inventividades instauram o novo, o que não se pensara possível; fatos cujos atos instauram o trágico feito de devassas, de catástrofes, de extermínios de toda ordem; feito de dilacerantes dores, lágrimas, mágoas. Fatos outros cujos atos são radicalmente antropocêntricos: a vida humana preservada sobre todas as coisas até o seu natural fim como a meta máxima e sem medida.
Vai um sujeito isso tudo ouvindo. Vai um sujeito isso tudo cheirando. Vai um sujeito isso tudo vendo. Vai um sujeito isso tudo degustando. Vai um sujeito isso tudo sentido.
Um sujeito a tudo isso vai vendo-ouvindo-cheirando-degustando-sentindo-pensando. E à medida que assim vai, também o acometem as indagações de empréstimo ou não, as quais vai, em contidas afirmativas exclamatórias, ponderando.
Então era isso. Tudo: infância, adolescência, juventude, estudos, amores, dissabores, desejos, buscas, expectativas, esperanças desaguariam nisto. A luta renhida a cada manhã, para ao cabo se constatar o em vão. Então era isso: nome, honra, dignidade rimando com anônimo, com perigo de fome, com fadado à marginalidade. Então era isso: o fundo do poço dando em água salobra; entrada permitida apenas no salão dos perdedores, que vencer já vem de berço, para o que pouco ou nada resolvem terços, para o que pouco ou nada servem as bênçãos, mas sim as grandes fortunas avessas a rimas importunas.
Então a vida era isso: matarmo-nos por um pedaço de osso; sucumbir os outros para que a medalha se pendure em mosso pescoço; sempre para esmola algum caroço, que isto dignifica o nosso topo.
Então a vida era isso: ao cabo, matar ou morrer, ganhar ou perder, amealhar ou ceder, se esconder ou acontecer, perambular ou se estabelecer.
Então a vida era para isso: risos, ríctus, ritos, ditos, grifos, elevadiços, delitos, mitos, místicos, míseros, ricos, por fim – sumiços.
E esse sujeito que a tudo isto via-ouvia-cheirava-sentia-degustava-pensava captava ao mesmo tempo o ritmo dos cães que pelas ruas buscavam sua comida, os cães que nas casas presas latiam em defesa de sua comida e os urubus, sobranceiros, sobrevoando e decerto a tudo vendo-ouvindo-cheirando, certos de que tudo embaixo acaba se putrefazendo em sua comida.

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