Data 04/mar/2005 |
Vira-se mais de uma vez explodir. Um enfarto. Um derrame. Tantas foram as angústias. A dor de mãe/avó, cordata e impotente. Além de mulher, as forças debilitadas por crônicas doenças instauradas pela velhice.
Pobre filha. Por que fora capaz de submeter-se a uma condição danosa assim. Infância tão feliz. Que ainda desfrutara dos encantos das brincadeiras e cantigas de roda. Na escola. Nas esquinas com as meninas. As famílias na calçada curtindo a noite calorenta. Gozando o luzeiro das estrelas. O remanso da lua mínima, das luas intermédias, da lua máxima.
Dormia seu sono santo. Com o acalanto dos beijos e as recomendações aos anjos. Ia assim rompendo, etapa por etapa, a formação de donzela zelosa de seus atributos e dotada dos predicados apropriados a prenda com pouco pronta aos cortejos, aos insinuados desejos. Prenda a ser digna de conquista. Exposta e resguardada como um bem a se possuir, tendo-se em conta um conjunto de valores certificáveis.
Filha de berço. A mais completa expressão então em moda com que se qualificava uma formosa e recatada mulher. Orgulho de pais presentes durante toda a trajetória daquela rosa ou magnólia, desde a fralda à saia de roda. Cuidados tantos tão poucos para o fim destinado: o esplendor em sua forma vigorosa disposta ao seguimento da vida.
Durante, feito toda mãe, fora pretendendo algures para uma filha assim esmerada. Sonhava-lhe passarelas. Que não lhe fosse o mundo o das cinderelas, todavia bem-aventurosa na sua porção maior, que faria por tê-la merecida: colhe, quem planta.
Elucubrações de mãe prestimosa estabelecem horizontes povoados de benfazeja vida. Cujo dom nada inveja situações nirvânicas. Não que mãos beijadas fomentem tais virtualidades. Entretanto, que não lhe pesasse demais o fardo fatal da existência.
Qual. Pouco é ainda o máximo empenhado pela consecução de tais benesses. Feita, inteiriça de vida, à flor cabe a decisão de suas negativas, relutâncias e entregas. E pode dar-se também que seu dom não considere tamanha tributação berçária empreendida, para que o ideário de mãe, que se demonstrou, não passasse de um imaginário subsumido.
Qual. O arrocho forjado pelos apelos da insensível condição humana talvez a tenha induzido a conduzir-se de modo precipitado. E foi montando em quantos cavalos passassem, atormentada por chegar ao porto seguro do bom pão e melhor vinho da vida garantidos.
Aterrissou nessa corporação cuja história vai crivada de heroísmos pouco percebidos e truculências muito vistas. Assentou praça. No roldão de profissão investida de conflitos e aflitos encontrou tempo de apaixonar-se por um mano. Logo, entre atos e beós casaram-se.
Euforia esfriada, a intolerância assumiu a truculência e os espancamentos externos estenderam-se para dentro do lar. Anos, década a fio o pó, o batom, a maquilagem acobertando os estragos. A mulher resistia. Havia os filhos. O afeto pelo pai.
Todavia, logo a bruteza passou a desconsiderá-los. E o espancamento estendeu-se a eles. Que manifestavam defesa à mãe. O pânico tomou-as. Ficaram meninos perturbados. Peça nova ao sofrimento geral.
Anos, anos, década indo assim. A mãe/avó no seu padecimento, debaixo de sérias ameaças, ante a desgraça desabada sobre filha e netos. Também a ela o terror continha. Havia a sentença de consumação da desgraça, caso buscasse abrir o fato com qualquer. Tanto ela quanto filha e netos.
Nunca havia presenciado os atos. Até aquele dia de imprevista ida à casa deles. Parecia um pandemônio. Súbito, deu-se consigo entremeando-se entre o carrasco e os espancados. E pela única vez levou um baita soco no rosto. Pois caiu exatamente ao lado do revólver dele pousado na mesinha de centro.