Felicidade

Data 25/Abr/2005

     Um substantivo abstrato, ensinara-lhe a escola. Designa ser de existência dependente. Acomodou-se. Empregou-o Mais tarde, increpou. Muitos seres dependentes eram absolutamente concretos. Concretos e não independentes. Não como o com que se conformara a Gramática.
Seres de carne, sangue, osso, juízo e, pelo visto e sabido, não-portadores de felicidade. É certo que a quase todos a felicidade está com o outro. Felicidade é o que o outro é. Felicidade é ser como o outro. E o outro que não se sabe dela portador considera que a felicidade está noutro.
Afora, todavia, essa mobilidade comparativa que parece confirmar seu abstracionismo, a felicidade talvez devesse ser um bem suscetível de aquisição indistinta de raças, cores, classe sociais quaisquer. Ainda que para atingi-la, como um prêmio ou uma dádiva, fosse imprescindível muita labuta físico-mental.
Seria que para a felicidade não tem idade. Para a felicidade, não careceria idoneidade. Para a felicidade, não haveria a obrigação de se apresentar a identidade. Para a felicidade, não se solicitaria a ancestralidade. Para a felicidade, não se exigiria a nacionalidade. Para a felicidade bastaria a supressão da arrogância. Para a felicidade, seria necessário ser portador de comprovada solidariedade. Para a felicidade, conviria o exercício da tolerância. Para a felicidade, seria imprópria a abastança, a abundância, a extravagância. Para a felicidade o passaporte-mor seria uma insuspeitada caridade.
Seria crime inafiançável incutir que a felicidade é dom da pobreza; que a felicidade não reside na riqueza; que a felicidade pode ser manipulada pelos baús da esperteza; que a felicidade seja o pretexto para espúrios negócios.
Lupicínio cantou uma canção, que não parou mais de ser entoada por outros e pelo povo de seu país, em que lamenta ter a felicidade ido embora. Sua presença concreta se dava, ao que parece, com a permanência da amada. Ocupou sua ausência a saudade. Com a qual rima, mas jamais é solução.
Não obstante a felicidade nunca tenha uma única face, tampouco um único fim, ela é a definitiva finalidade. Assim na terra como no céu.
Então é a felicidade um anseio permanente. O homem age com os olhos nela. Essa coisa multefacetária e infinda. Essa preciosidade pretendida por quem na face da terra viva e sobreviva.
E não há felicidade desacompanhada. Ela povoa o sonho como nada o habita tanto. Sonhar é almejar a felicidade: o Paraíso perdido – para os crentes, felicidade extrema; o céu crido e desconhecido – para aqueles mesmos, a felicidade máxima.
A felicidade é ponto de parada. Ali se ancora para uma estada. Mas aí ancorado se quer ou já se traz outra jornada. O lugar nenhum é seu ponto de derradeira chegada. Pois que a morte, sendo verdadeiramente este, é sempre uma indesejada, conquanto seja de fato o fim da estrada, que, como a grande infelicidade, o quanto se pode, se rechaça.
Na lida, o trabalho respeitoso e dignamente remunerado, que dá orgulho, honradez e acolhimento. No cotidiano, do mercado de consumo de massa, não receber as migalhas, que, concedidas, ainda mais humilham. Na mesa, o sustento a contento. Na labuta, o retorno, recompensa ao que se dedica, seja a justa e digna morada. Pão fresco a si e aos filhos. A bebida certa, aos menos na medida, para a sede provocada pela profícua empreitada. Não à esmola que incomoda, amola, e tanto humilha quanto vicia. O direito de ir e vir; de ser ou não; de ter ou não; de ser e não ser; de ter e não ter. Eis alguns traços que a felicidade propala.
A felicidade sempre está em falta. Quer seja o grande amor, que por alguma desrazão não se tem. Quer seja o bom vinho que o precário salário não permite à mesa pôr. Quer seja a almejada viagem que as economias ainda não são capazes de sustentar. Quer sejam os filhos ou netos que ainda não vieram por uma questão de planejamento familiar. Quer seja a doença, leve ou grave, que ainda não se curou, mas que há de se curar. Quer sejam as dores e angústias de certas desavenças que se demoram a dissipar.
Afinal, a felicidade, impelida pelo sonho e pela esperança, é o horizonte pretendido e por isso buscado. E que, quase sempre, é descontruído pelo fazimento por tê-lo, que acaba outro construindo.