Lagarticídio

Data 04/fev/2005

     Assaltou-lhe de súbito o mundo de destroços reiterados à saturação pela imprensa. Viera-lhe, ali, ante aquele minúsculo episódio, imagens das mais recentes catástrofes cujas conseqüências foram fatalmente as matanças colossais.
Passou-lhe recente tragédia desabada sobre os povos asiáticos. Aquele descomunal gigante, muito mais que Adamastor, enfurecido, soprando água sobre tudo, contra todos, sobre todos. Mal foi possível o salve-se quem puder.
Mar amansado por sua própria exaustão. Bicho resguardando-se em sua calmaria, foi que se pôde, então, dar começo ao dimensionamento do estrago. Devassa completa. E o número de mortos, dia a dia, semana a semana, a cada achado, aumentando de forma desconcertante. Mais de centena de milhares de vidas humanas (não contadas as outras).
Os mortos amontoados, esparramados em meio aos destroços. Eles próprios destroçados. Depois, corpos empacotados postos em rasas valas enfileirados. Valas abertas com escavadeiras próprias a abrirem buracos destinados a assegurarem sanidade à vida. E valas e fileiras de corpos embrulhados. E valas e fileiras de corpos embrulhados.
Esvaído o tsunami, o processo mental metafórico trouxe-lhe o genocídio no Iraque. As centenas de milhares de mortes praticadas de toda ordem. Os gigantes destroçadores são outros. São os monstrengos arrasadores. São os homens-bomba. São as degolas gravadas para exibição.
Ah! Iraque, Palestina, Israel, Egito, Iran, Estados Unidos da América do Norte! Por quê? Por quê!? E até quando?! E as respostas que lhe dão pelos jornais, pelas revistas, pelas entrevistas, pelas declarações não lhe respondem.
E em seguida o acomete os campos de concentração anti-semitas. Homens. Mulheres. Velhos. Crianças. Centenas de milhares. Aprisionados. Amontoados em toscos, rudes e fétidos salões esperando a vez de ir para os fornos cremadores. O horror ritleriano.
E desse conglomerado de judeus aprisionados para os fornos de Auschwitz é catapultado à Guerra de Canudos. O genocídio em Monte Santo. O amontoado de mulheres com seus filhinhos, cuja foto histórica ficou famosamente denominada “das prisioneiras”. Foram remetidas para as prisões de Salvador, enquanto os seus homens eram friamente fuzilados.
E de Canudos para Beslan. A escola de Beslan. As crianças de Beslan fuziladas dentro de sua escola! Fuziladas porque os seus assassinos adultos não se entenderam. E por isso mataram crianças, das quais se diz serem sem juízo. Os adultos, que têm juízo, mataram crianças!
E de Beslan, viu-se arremetido à chacina do Carandiru. Os corpos mortos. Uma centena deles. Depositados em urna de câmara fria a cadáveres estampados pela mídia. Daí, à chacina da Candelária. Crianças de rua assassinadas ali mesmo, onde dormiam, ao relento do pátio da igreja da Candelária.
O episódio minúsculo que revivificara-lhe tais tragédias: descobrira dois substanciosos ninhos (nunca os vira antes em sua vida) engenhosamente construídos entrelaçando as folhas de uma palma de seu decano coqueiro. Invólucro em forma de tubo resistente, seguramente protetor. E das demais folhas do seu pródigo e generoso coqueiro se alimentam.
A solução que relutara em admitir era extirpar os ninhos e matar as lagartas. Os ninhos fervilhavam de lagartas e filhotes. Decidira queimá-los. Usara jornal. Muito e muito jornal. Fogueira de jornal. E elas, às centenas, se contorciam agônicas.
Um espetáculo deprimente. Sentia-se um criminoso. Um algoz alemão jogando bandos de judeus nos fornos de Auschwitz.