Deslumbramento

Data 12/março/2004

     Da outra calçada, ela mal percebera, ele saíra. Atravessou a rua, parando pouco adiante dela na calçada em que ia. E, ao aproximar-se, viu-se surpreendida por aquele episódio espantoso. Ficou como que petrificada. Boquiaberta. Ficou, certamente (pensa agora com muito pudor), muito mais feia do que já era. O que não fora capaz, no entanto, de demovê-lo do gesto. Ao contrário, embora figurasse uma timidez visível, não se retraiu. Ela, passos retesados, mas contínuos, foi-se desviando dele, ainda que com os olhos nele completamente pregados, ou, melhor talvez, naquele todo gestual que ele representava (mas se recorda, como se fosse agora, dos arrebatadores azuis dos seus olhos)
Deu um passo à frente sem agressividade e então cumprimentou-a e lhe disse, em linguagem de homem, o que um menino certamente ouvira, guardara, por muito gostar, e dela se valera naquela ocasião que por certo lhe parecera adequada.
A surpresa redobrara. E desta vez sim imobilizada, ouvira-o nitidamente pronunciar o seu nome (ela nunca o vira, nem o soubera). E em seguida formular (hoje não saberia precisar se já naquele tempo também, o que parecia muito provável, pois, como o gesto ofertante que seguramente o era, deveria muito tê-la ouvido) a estereobanalizada frase “uma flor para uma flor”. E depositar entre suas mãos desgovernadas pelo torpor do deslumbramento um não menos estereotipado botão de rosa. Isto depois de na rosa depositar um seu delicado e moroso beijo. E como arremate, um nada tímido perscrutante e devotado olhar verde-azul de eloqüência maior que a da voz. Que, aliás,  era nada eloqüente, de tão medrosamente frágil. Frágil em nada simulado. Frágil mesmo. Ousada fragilidade.
E deixando-a assim, muda, meio estúrdia, tornou à calçada de que viera, indo sem que ela se encorajasse em ao menos olhar qual direção tomara. A rosa entre as mãos. A mochila a tiracolo. Os cadernos e livros, no braço esquerdo, que sempre lhe foram tão pesados, nem pareciam estar ali.
Tornada a si, já um pouco recobrada e desprendida do assombro, a cabeça retomando o governo, pôs-se a ir. Talvez tivesse já atrasada para a escola. Seria outro choque, se bem que de outra natureza, o fato de chegar na escola com atraso. Nunca lhe acontecera isso.      Apressara-se. Chegara com a campainha soando.
Fora muito incômodo e nada fácil explicar muitas vezes. Quase não criam na verdadeira história que sucintamente repetia. Todavia, mais que incômodo era a completa absorção em que ficara durante todo o período. Impossível concentrar-se. Fora um sacrifício. O fato, vivo, não a deixava. Findas as aulas, custosamente livrou-se das amigas. Queria-se só na temerosa esperança de que, súbito, de uma esquina ele reaparecesse. Naquela hora, mal o percebera. Os olhos logo a tomaram. Fiapos apenas de vastos cabelos tão loiros quanto os dela. Mas não deixara de notar, todavia, que era sem sardas e magro. Sério. Uma camiseta branca. Um short azul. Alpercatas também azuis.
Tudo num átimo, naquele relâmpago instantâneo em que beijando a rosa, pousou-a em suas mãos. Fitou-a, que baixou os olhos, tal a força daqueles azuis-esverdeados sobre ela. E ir-se embora sem lhe surgir, no final das aulas, de qualquer esquina. Nem no outro dia. Nem em dia nenhum. Desapareceu para sempre, como fora desaparecendo cada uma das pétalas para nunca mais.

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