Utopia

Utopia
Data 30/dez/2004

     Deixarem-se ficar ali por conta da hora à-toa. Hora sem tempo marcado. Hora para puro prazer de estar se sentindo pleno de tão vazio de tudo que não seja aquele absoluto instante.
Alentavam isso como das mais caras das utopias imediatas que habitam o cotidiano de gente viva, atuante, trabalhadora, sobrecarregada de afazeres, compromissos, prazos, horários.
Sábado, domingo, suspensos os prazos e compromissos, trégua que a máquina cotidiana reprodutora da vida submetida a mais valia concede aos seus súditos. Então, as utopias ressurgem, renovam-se, reaviavam os ânimos. E retocadas tornam ao cabide da esperança na incerteza de que, tarde que seja, fará daquela roupagem utópica a mais concreta realidade.
Assim se tece a vida das gentes. E de outro modo não parece ser viável, tirante a conformação dos desambicionados, gratos à vida por sabê-la ar, fogo, terra, água. Por sabê-la dia, noite, sol, lua, verão, inverno, céu, inferno.
Portanto, esperança não se perde, se retoca. Perdê-la é perder-se. Perdê-la é encontrar a descrença. Perdê-la é descrer dos homens sãos. Perdê-la é descrer que a natureza, como Deus, é amoral, não-idiossincrásica. Perdê-la é descrer de si mesmo.
Não. A esperança revigora a razão como a paixão. Pensar a vida, projetá-la e ter fé em si, nos outros. Tropeços são os imponderáveis próprios aos que se põem a caminho.
Então as pequenas utopias perfilham como as conquistas a que levarão os projetos traçados e vivos. Feitos, refeitos. E são infindáveis, permanentes. Reorganizados, se não atingidos. Tornados já outros, quando se toma o champanhe de um pódio.
Pois aquela utopia (quase boba, não a confessaria) fora sendo preterida por outras, que a urgência da vida urde e se tornam incontornáveis. Todo ano, precisamente, toda passagem de ano retocava-a. As pessoas em estado de graça, contaminadas pela epidêmica e inconsciente alegria de que um ano novo vai se inaugurar. Logo, é tempo de renovar esperanças, reenergizar-se e pisar o ano entrante querendo ser, querendo poder.
Dá-se a hora do réveillon. Fogos pipocam a incendiar a incontida alegria global. Hora mística, de soltar adrenalinas, afeita a magias. Efusivos, emocionados, cumprimentos, mútuas felicitações. As televisões mostram o mundo todo feito de pirotecnias.
Então as utopias são formuladas, renovadas, refeitas. E toca vestir-se de novo ano e na sua tessitura estar de verdade tecendo e torcendo por suas utopias. Das quais muitas são o cotidiano de muitos outros. Sim, também as utopias são muito relativas.
Pois nesse Ano Novo sua utopia simples, singela (quase boba, não a confessaria) estava em vias de se plenificar. Fora mais cedo. Ela o surpreenderia. Quando chegasse pensando tê-la que esperar, a veria já devidamente acomodada naquele lugar, naquela mesa pensados. A vela de cera comprida e verde feito um cacto ocupando o centro da mesa. Na hora exata, ele a acenderia com seu isqueiro niquilado, herança de avô pra pai, de pai pra filho. Depois do beijo demorado (lábios nos lábios), sem pejo dos outros, que, tão eufóricos, talvez nem os percebessem, brindariam com cerveja e água tônica. Ele faria o pedido que ela já sabia: bisteca ao ponto a ser servida depois do espocar dos fogos e dos cumprimentos.
Depois se sentariam. Um de frente pro outro. Ele olhando nos olhos azuis dela. Ela olhando nos olhos acastanhados dele. Enquanto, trocando carícias, bebericariam cerveja ele, água tônica ela.
Seria, por fim, neste révellion. Naquela cidade enorme de que ambos gostavam. Naquele restaurante acanhado, simples de que ele tanto gostava. Ela já havia se instalado. Iria surpreendê-lo. Embora entre emocionada e apreensiva, pois pouco faltava para a meia-noite.

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