Os fragmentos de horizonte persistentes não nos dizem respeito. Recompostos, restabelecerão os enigmas incuráveis. Tornarão a dependurar os desígnios solertes para que renovadas esperanças retomem os caminhos a seu encalce.
Mesmo o arco-íris indisponível com sua indumentária engalanando o arco-da-velha, eterna maga, que surde efêmera, ostentando sua multicolorida iluminária, arrebatando olhares encantados e empapados de sonhos, mesmo esse arco-da-velha íris eterno não nos diz respeito.
O azul aberto em infinito, avesso ao fixo, e indo para além do visto, tradução imediata e necessária aos sentidos humanos do vácuo cósmico com seus astros-naves, sonâmbulos perambulando à toa, indo para lugar nenhum, não nos dizem respeito.
Esse vagar sonâmbulo da Lua dando à Terra luz e sombra, investida de Sol compondo o dia, e que, ao vedá-lo, esparge a escuridão da noite, permitindo o acender-se de estrelas tremelicando feito bilhões de pirilampos, não nos diz respeito.
O aparente caos feito de luz e umidade; árvores, cipoal, folhas, flores, em que habitam animais imagináveis e inimagináveis em plena convivência determinada pela lei da selva, desde os mais ínfimos insetos às descomunais girafas e elefantes, não nos diz respeito.
O complexo tempo, esse agente controverso, que não é moço, nem velho tampouco, que único sendo muitos e muitos, de uma indivisibilidade absoluta com suas manifestações concretas, que se fazem através do dia e da noite, da madrugada ao crepúsculo; do inverno, com seus frígidos ventos, ao verão, com seus raios e trovoadas e, em meio deles, a primavera.
A primavera é quando o tempo se dispõe a mostrar suas graças. Então esparrama pelas ramas das plantas sua face: mil flores crivadas de outros tantos mil arranjos em tonalidades de cores. A primavera é quando o tempo escancara sua infinita alegria feita de si, estampada para si: o tempo se ri a si mesmo. Também assim visto, isto não nos diz respeito. À natureza, ao cosmo, ao tempo, enfim, igualmente nada dizemos respeito, senão como todos os outros seres.
A absurda e criminosa deterioração da natureza com o desmatamento vertiginoso, com as poluições assassinas das mais variadas ordens no ar, na água e no solo; a fome voraz genocídia aumentando ainda mais, quanto mais se sofistica a vida humana em tecnologia (depuração de sua inteligência); a discriminação na detenção dos recursos para a sobrevivência, que mais alarga o fosso entre os chamados ricos e médios de um lado, e a escandalosa maioria de pobres e indigentes de outro; o progressivo esgotamento de fontes de vida, cuja tragédia maior é o avançado caminho rumo ao fim da água potável; a todas essas ações, e atos, e procedimentos a natureza, o cosmo, o tempo são indiferentes.
A nós, os homens, apenas e tão-somente elas dizem respeito. Ao cabo, apresentarão as conseqüências. E uma vez extinta a vida por completo, irá por certo processar-se em milhões ou bilhões de anos na esterilidade, como, afirmam, já o fez.
Depois, depuração consumada, estabelecer a possibilidade de um outro ser inteligente, escoimado dos genes das estupidezes todas dos anteriores e faça já aqui na Terra o Céu prometido e pretendido.
É certo que a cada início de ano, a cada Ano Novo, ficamos coçando, roçagando a inteligência, a alma, pensando quem sabe ainda é tempo. É que nos impulsiona insistentemente a isso dois talentos divinos que nos dizem respeito e que, por mais que teimamos, não nos deixam: crença e esperança.
Arquivo do Autor: Tito Damazo
Vida morte vida
Não obstante os edifícios e altos prédios, a tardezinha se insinuava pelas frestas das paredes de vidro. O dia esvaía-se por seus mil escaninhos. A noite se avizinhava com seu carossel feito de cotidiano e sortilégios. O corpo, este pouco considerado termômetro da vida, também acusava que o dia era findo e que a noite vinha com seus remédios de sossego e descanso.
Hora de ir suspendendo o infindo trabalho bancário. Deixar tudo engatilhado para amanhã. Hora da pausa necessária. Assim conscientizada, pôs-se nos arranjos de término de expediente. Tudo ajustando para no dia seguinte chegar, retomar o fio da meada e redisparar a rotina da vida.
Prontos os afazeres burocráticos da papelada bancária configurada em contas correntes, extratos, borderôs, duplicatas e etc, entregou-se ao mecânico trabalho de cerrar cortinas, desligar luminárias e uma ou outra vidraça que, apesar do ar-condicionado, mantinha discretamente aberta.
Ia nesse ritmo descontraído e de certo modo prazeroso de fechamento, quando se deparou com um estranho ser à sua sala. Ora surdia por ali uma pequena mosca, até mesmo um pernilongo, que enxotados logo desapareciam. Mas agora, numa dobra da cortina de sua janela central, havia um grande inseto. Comprido feito um graveto e de asas também compridas e duplas. Ao tocar na cortina, o inseto voou para outro lugar da sala. Assentou-se justamente sobre sua mesa. Dali para os papéis de uma prateleira.
Ficou entre irritada e apreensiva. Não era adepta de pura e simplesmente eliminar os animais. Todavia aquele inseto indo de um canto para outro retardava sua ida para casa. E não queria deixa-lo ali, pois intuía que lhe podia ser fatal. Pretendia pô-lo para fora. Por isso, reabrira todas as cortinas e janelas. Contudo, o inseto voava menos para as aberturas que lhe davam o lá fora, seu devido lugar, com arbustos verdejantes e floridos.
Certa de que o método de enxotá-lo era definitivamente inviável e firmada na decisão de que ali o inseto não poderia permanecer, passou a pensar em qual seria a alternativa. Relanceou pela cabeça quem mais poderia estar ainda ali e que lhe pudesse ajudar. De imediato veio-lhe o guarda de plantão. Não deveria recorrer a ele. É sujeito ansioso, quererá logo resolver a questão e acabará sendo desastrado, pondo fim ao inseto. E isso ela não queria fazer nem que fizessem.
Lembrou-se de que estava sem condução. Tomaria um coletivo como procedia, estando em tais circunstâncias, ou ligava pedindo ao marido que viesse buscá-la. Isso quando não fosse muito corrido para ele, que retomava o trabalho diariamente às sete da noite. Todavia a lembrança acometeu-a decerto porque excepcionalmente não precisaria ir ao trabalho aquela noite.
Ele veio. Ela o esperava à porta do banco. Sem nenhum pejo, pediu-lhe que antes fossem até a sua sala para que ele removesse para fora dela, vivo, repetiu enfaticamente: vivo, por favor, um inseto que teimava em não sair de lá. E instantânea e concomitantemente ela e o guarda trocaram um olhar. Ele por certo surpreso e logo entendendo por quê não o procurara para que efetuasse tão banal serviço.
Também o marido, a princípio utilizando-se dos mesmos procedimentos aos quais recorrera a mulher, não conseguiu enxotá-la. Tratava-se de uma bela libélula, disse ele contemplando-a por instantes. Mas o lusco-fusco restava ainda por minutos. Ia já se desfazer por completo. Teve então a idéia de aproximar dela delicadamente uma régua. Passados alguns instantes a libélula estava inteiramente sobre a régua. Então, cuidadosamente, vagarosamente, chegou até a janela central e impulsionou-a para fora.
A libélula assentou-se em um lírio que pendia para a janela. Mulher e marido ficaram, por momentos, agraciados e gratificados, contemplando aquele quadro singular.
Todavia fora mesmo por fugaz momento. Pois um belo, saudável e estridente bem-te-vi, conhecido da bancária, por ali sempre estar estridulando seu grito bom de pássaro, súbito pegou a libélula. E ainda não estavam refeitos do susto, e ele já a havia engolido por completo e gorjeava fortemente feliz. Decerto pelo apetitoso jantar efetuado. Restava-lhe procurar o pouso para o justo sono.
Banqueiro Nobel da Paz
Os jornais vieram dizendo que o Nobel da Paz do ano era um banqueiro. Estranhou. Teve um certo estado preliminar de indignação. Admitir que bancos podiam agir em prol da paz humana, geral e indistinta, além, portanto da pessoal, grupal ou setorial, parecia uma maquinação que lhe escapava. |
Heróis/filhos
Temporada de neto na casa. É quando a severidade baixa a bandeira e o território ostenta uma invisível, mas pressuposta inscrição no portal: aqui mandam os netos. Eles parecem não ver a hora de chegar tais momentos. Argutamente sabem que os despotismos paternos se retesam.
A naturalidade do cotidiano é pródigo em regras. Por certo percebem que quanto mais crescem menos podem. Mais lhes exigem. A vida vai sendo, em quase todas as vinte e quatro horas, de aprendizagem, quanto mais aniversário fazem.
Estímulos, ensaios com erros e acertos, exigências, castigos aos denominados desobedecimentos, necessidade de solicitar concessões, aceitar não-concessões. São procedimentos por meio dos quais vão desde sair das fraldas para o peniquinho, deste para o vaso sanitário; da comida na boca para a auto-alimentação, a que está condicionada a concessão dos cobiçados chocolates; do usar e depois guardar o brinquedos, admitir a divisão dos mesmos e dos demais objetos com os irmãos. Vão cada vez mais conhecendo a esfera das obrigações, a qual infelizmente deve ser alternada com os prazeres que pareciam então quase exclusivos. E disparam as descobertas. Também elas abrindo aos prazeres, permitidos e proibidos e às obrigações mais e menos exigidas. É a lei, diz a canção de um contemporâneo compositor da música popular brasileira. A qual vai mais e mais desmeninizando-os.
Daí que, enquanto meninos são, estar nos domínios dos avós, é ter, provisoriamente suspensas, quase todas a incômodas obrigações, os contundentes nãos, as exigidas contenções. Ali se pode. Ali se tem. Ali as transgressões beiram os deslimites. Ali se vêem mesmos transmutados em seus prediletos heróis. Tornam-se os verdadeiros heróis daquele território. Heróis que mais exigem do agem, mais mandam do que fazem, mais são assistidos do que salvam. E se no lugar existem bisavós aptos, amplia-se ainda mais sua assessoria, torna-se maior o quadro de fâs. Ídolos insubstituíveis, plenos de energia e agilidade vão arrastando atrás de si aquele contingente de devotados e seduzidos anciões, quase todos esbofados pelo cansaço que lhes imprime a performance de seus batmans, super-homens, homens-aranha, hulks…
São heróis que devem causar inveja aos seus heróis, pois são únicos. Não têm de padecer daquela triste sina da duplicidade. São heróis pura e simplesmente. Não precisam de que os outros (e nem muito menos eles próprios) se vejam em perigo iminente para que se transformem em heróis. Precisam apenas ser.
São o centro da casa. Durante sua estada tudo gira em torno deles, desde quando acordam até o recolhimento, que não se faz tão cedo e não sem muita argumentação. Nesse livre território brinquedos abundam. Há os de que gostam muito e que quiseram ter. Há os que não solicitaram, mas que, encontrados, passam a querer, mais uns, menos outros. Almoçam e jantam diante da tevê, assistindo a seus desenhos preferidos, com direto a refrigerante em todas as refeições todos os dias e sendo incensados a comer só mais um pouquinho.
Vão para o quintal devidamente paramentados. Vestidos de capa e máscaras, correm, saltam, trepam nos arbustos. Que por algum tempo são ora cavalos, ora naves espaciais, ora altíssimos prédios nos quais grudam sua potente teia. E tornam ao chão sempre em perseguição aos vilões, via de regra um ou dois dos avoengos, que, intimados, na condição de vilão ou vilã, para lá se deslocam. Levam tiros, são enredados em inquebráveis teias, são retidos pela heróica força do bem e conduzidos à prisão pública onde deverão passar os restos dos seus dias.
Quando se vão, a casa volta à sua pacatez. Os avós se reencontram com sua enxaqueca, sua artrose, sua crônica indisposição, seus achaques, seus remédios, a vidinha sem graça com sua mesmice de novelas, missa e macarronada dominicais e o fantástico global show televisivo.
Eles se vão decerto não menos abatidos. Pois também tornam à mesmice, ao território onde já não são mais freqüentemente heróis e sim mais exigidos, vigiados, admoestados como o são os vilões. Ali, quanto mais passa o tempo, mais vão se rasgando suas fantasias e eles vão sendo cada vez mais filhos.
Freguês
A considerá-los assim, há-os por aí afora. Não é o freguês pertencente a determinada paróquia, cujas ações, hábitos pautavam-se levando em conta as posições decididas e avalizadas pela sua igreja, sua freguesia. Esse freguês parece ter definitivamente extinguido. Não é tampouco o outro, ainda em vigor, mas também já em franca descensão. E esta não apenas pelo desuso, porque, ao contrário daquele, os traços essenciais de seu significado permanecem, mas pelo estatus lingüístico. Denominar de freguês ao comprador habitual, tornou-se antiquado, fora de moda e “desvaloriza” a loja, ou a butique, ou o supermercado, ou o shopping. A denominação em voga é “cliente” em contrapartida a “empresário”, aos que vendem, ou mesmo promovem a venda. Mesmo a esses, que vivem desse negócio, já é depreciativa a palavra negociante. Ninguém abre um negócio, como há pouco ainda faziam. Desde um tempo a essa parte abrem empresa. Tampouco abrem filiações ou representações, mas franquias.
É freguês com um outro significado, mais especificamente atualizado. Diz respeito à família que lida com o caso. Freguês é um assíduo sujeito, decerto pertencente à massa dos desajustados por insujeição ou desujeição.
É um pedinte cujo significado mantém do tradicional pedinte tão-somente o sentido do ato de pedir. Nada de sacos encardidos, bornal, ou sacolas a tiracolo. Nada da figura esquálida. Cabelos e barbas crescentes, emaranhados e endurecidos pela sujeira. O encardido paletó que, como a camisa e as calças, vai enegrecido pelos vários tons de sujeira. Que chegam e deixam ficar pesadamente o dedo na campainha, cujos extensos esganiçados repetidos irritam a casa. E que solicitam determinado tipo de mantimento para a composição de sua miserável cesta básica.
Nada do embusteiro pedinte a quem serve apenas dinheiro. Aquelas histórias hipócritas de que está desempregado e o gás se acabou e as crianças sem leite. “Cinco o seis real” vão ajudá-lo a completar a quantia necessária para poder não deixar os filhos com fome. E o otário, tomado de compaixão, imaginando as pobres criancinhas desamparadas e chorando de fome, a coitada mãe chorando junto, corre à burra da casa e assaca a grana salvacionista. Uma ou duas semanas depois, outro. Simula sentir-se humilhado por aquele ato, todavia, prefere-o a roubar, porque é pobre, mas honesto e crente em Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo acima de tudo. É que veio à cidade, mora fora, ficou mais de uma semana de porta em porta em busca de emprego, qualquer que fosse, o senhor mesmo não quer uma limpezinha na calçada, no jardim (a calçada está limpa, o jardim, visível, devidamente aparado)? Precisa voltar, esperam por ele mulher e cinco crianças, que infelizmente vão ouvir dele o que já ouvem há algum tempo. “Um cinco real” ajudaria na passagem.
Esse é um outro freguês. Nada de subterfúgio. Mora nos recantos das imediações. Nada de imundícies. Aparência comum. Vestido, calçado. Já na primeira vez, declara não querer dinheiro e todas as vezes que vem declina o que quer comer e beber. Um dia pede café com pão e manteiga. Outro quer um sanduíche reforçado e um refrigerante. Num outro (e nessa ocasião apresenta sinais de semi-embriaguês) requer comida, isto é, um prato feito. Às vezes percebe que a calçada está tomada de folhas etc., que as árvores estão com os galhos muito reclinados à rua ou à calçada. Quer vassoura e instrumento de corte para fazer a limpeza e as devidas reparações, pois acha que passou da hora de se fazer ali uma reparação geral.
Neste inverno quase em branco, apareceu, num raríssimo dia de frio. Pediu uma calça jeans que lhe poderiam dar para enfrentar o frio, que suas calças eram todas muito finas. Arranjassem também uma blusa quente que já andava fora de moda, que agora estava morando na barranca da lagoa e lá o frio é maior. No bojo disso tudo, acaba sempre levando um de comer acompanhado de refrigerante.
É o freguês dali. Um bairro residencial, que nunca fora nem é uma freguesia, que nada comercializa ou empresaria. Um freguês que pede, embora não seja pedinte.
Antes de tudo, sobreviver.
Os pássaros do quintal da casa, de uns tempos aos de agora, logo perceberam que havia a eminente necessidade de nova adaptação. Não que houvessem árvores desaparecido. Nem haviam sido mutiladas por vis podas, como por aí se tem visto. Tampouco descaracterizadas por modelações que as desconfiguram, submetendo-as todas ao mesmo padrão formal, como se fossem, não natureza viva, mas mercadorias em série fabricadas para o comum gosto consumista instituído pelo mercado.
Não. Lá estavam elas vivendo seu tempo. Todas já de há muito adultas amadurecidas, expostas ao transcorrer dos ciclos, com suas cascas crestadas, suas folhas mutantes, seus galhos sempre ávidos de sol e ar.
Cada uma na sua. E todas, a seu modo, aconchegantes. Onde muitos deles residiam. Habitação única, coletiva em que harmoniosamente se acomodavam, construíam seu ninho para a procriação. Confortável e pacificamente continuavam ali tendo seus filhotes em sólidos e seguros galhos entrançados, emaranhados, enfurquilhados.
Podiam, entre instintivamente vigilantes e com certo sossego, explorar o gramado do quintal, onde sempre se encontra alguma comida. Basta entregar-se ao trabalho de pastagem e ir descobrindo-a. A ausência de gatos na casa dava naturalmente maior tranqüilidade e segurança. Havia cães. Entretanto estavam pacificamente acomodados à convivência com eles. Indispunham-se apenas com algumas ousadias maiores de certos pássaros, os pardais principalmente, mas também um e outro bem-te-vis, uma e outra juritis. Esses aventuravam-se até os comedouros deles a fim de surrupiar algum resto de ração ou de migalhas. De certo tratava-se de uma questão de honra. Aqueles atrevidos pássaros iam longe de mais. Havia que enxotá-los. Às vezes, em ocasiões dessas, o ímpeto canino sobrepunha-se à rapidez das asas, resultando quase sempre em morte instantânea de pássaro.
Afora esses desastres, que, convenhamos, eram provocados por demasiadas insolências, a vida, para os pássaros dali, corria tranqüila. Dispõem, inclusive, de cochos de água limpa para beber, onde alguns atrevidos e degenerados, mormente no verão, põem-se a tomar banho. Principalmente os pardais (sempre esses pardais!).
Mas a pacata vida pássara sofreu abalo. Seu risco aumentou grandemente. Deu-se o rápido crescimento de uma indomável, irriquieta, atletíssima pastora. Pássaro a pastar no quintal, uma temeridade sem precedentes. Pois se ela quer apanhá-los mesmo estando eles seguramente instalados em galhos fora de seu alcance! Late e salta freneticamente na direção deles. Beber água tornou-se o maior transtorno. Somente quando ela desmaia num canto do quintal de tanto sono. Assim mesmo é preciso cautela. Ela é sorrateira.
Agora, pense-se nas iniciações de vôo dos filhotes. Tem sido uma baixa absurda. Quase nenhum lhe escapa. Apanha-os num átimo. O quintal, tão extraordinário para essa prática ficou completamente impossível.
Há pouco uma teimosa pomba-mãe arriscou-se com dois filhotes. A cadela apanhou um. O outro, enquanto o irmão era agarrado, desesperadamente encontrou, rente a um canto dos muros, um monte de palmas secas no qual se entranhou. A cachorra, que à presa não devora, apenas pega-a pelo prazer de vencer, esteve ali farejando.
E a pomba, logo descoberta pelas pessoas da casa, passou a ficar ali. Mal lembra já um filhote. Está toda emplumada e, no entanto, quando percebe não haver perigo, rapidamente sai de debaixo das palmas para pinicar umas migalhas e bebericar água que passou a encontrar nas proximidades. Como não mais arriscou a voar, parece ter desistido de encorajar-se para isso e acomodou-se àquela vida enrustida e de migalhas milagrosas. Preferiu, ainda escrava do medo, ir sobrevivendo, a arriscar o seguro vôo que as asas não mais imberbes lhe garantem. Por certo a remoção do monturo de palmas lhe trará o pânico deflagrador da coragem que a arremessará para sua vida de pássaro.
Ansiosas
Duas senhoras. Idosas. Viúvas. Sozinhas. Cada qual com suas morrinhas. Enternecem-se. Adoecem. Melhoram. Adoecem. Nada devem à imagem estereotipada: já meio curvadas, desmusculadas, indesejável e irrefreável barriga, rosto em rugas do tempo e das, agora, mais acentuadas rusgas.
Matam o tempo, que mata-as com a morfina rotina cujo ritual se inicia já bem de manhãzinha. Acordam com os pássaros. A uma delas de sono atormentado, muitas vezes aos pássaros se antecipam um ou outro longínquos galos. Como fora menina vivida em sítios, fazendas e ali, em pleno centro da cidade, fica com a desconfiança de que sejam puramente imaginários. E aí fisga-lhe mais ainda o atormentante medo de perder-se de si mesma, tornando-se noutra completamente desconhecida de seus entes queridos. O que sabe muito bem, porque viu acontecer com mais de uma amiga sua. Porém, afiançam-lhe que sempre há alguns quintais mais à margem da cidade.
A outra não. Dorme pesadamente. Sono tão de pedra que raro lhe é ouvir o relógio dos bem-te-vis, a barulhada dos pardais. Decerto de tanto ouvir a outra dizer, pensa ouvi-los às vezes. Mais parecem povoar, isto é, incomodar seus sonhos. Estes, sim, são por ela bem vividos, longos e constantes. Venturosos. Raros os ruins. Tão bons que fica deprimida um bom tempo com seu travesseiro (e isso às vezes perdura o dia inteiro) por ter acordado.
Durante o desjejum sempre a sonhadora é quem mais fala. A outra fala pouco. Escuta muito. Sonos intermitentes, achaques diversos, o que a empurra a muitos médicos. A outra com a audição bem conturbada (imaginem! escuto muito bem) fala, fala, fala. Fala quase irretorquivelmente, dos seus sonhos. Sempre grandiosos. Ela, em todos, a figura de destaque. Quando anunciados como ruins, resume-os de forma peremptória e obscura. O que a outra logo entende ter havido insucessos para a narradora-personagem. Assim consomem café com leite pão e manteiga já preparados pela que sai da cama sempre antes do sol.
Caso não haja ida programada a médico ou dentista pela manhã, quando ambas vão, embora apenas uma irá à consulta, sentam-se à varanda e põem-se a passear pelos jornais assinados pela casa. Cada qual com um. Passados os primeiros momentos da persecução, quase sempre em acentuado silêncio, a que sonha encontra algo que julga conveniente ser lido em voz alta, para que a outra o saiba, mesmo que essa nunca sinalize estar interessada em ouvir, pois, embora a outra se ponha a ler em voz alta, continua firmada no jornal que perscruta.
Na verdade, a que se põe a ler em voz alta, com o jornal segurado com as duas mãos e aproximado aos óculos, sequer repara se outra lhe está dando a devida atenção. Vai lendo, lendo, lendo. Enquanto isso, aquela, talvez para impedir como pode a atrapalhação, lê movendo os lábios numa leitura semipronunciada que, por certo, de alguma forma, assegura-lhe a concentração. A outra continua. Vai de uma a outra das notícias que certamente selecionara para aquele ritual quase diário. Praticamente todas elas se referem a roubos, assaltos, assassinatos, mortes.
Vem, depois do almoço, o jornal televisivo a que a sonhadora se dedica com a televisão em alto e bom som. Basta ver um fato daqueles, um desastre qualquer, que se põe a chamar insistentemente a outra que, se chega atrasada, ouve a lamentação irritada daquela. E depois do programa de receitas, a que a sonhadora firmemente assiste do mesmo modo chamando a outra para alguns pratos diferentes e se lamentará irritada, se ela (que quase sempre assim procede) novamente chegar atrasada, vem a novela da tarde.
A esta também ambas se entregam. Mas também com a novela, tanto à de agora como às da noite, acontece algo semelhante ao que com a leitura dos jornais. A sonhadora, durante toda a novela fala para as personagens, fala das personagens, dá gritinhos de torcida ou de receio, prognostica ações que cometerão as personagens. A outra, numa poltrona mais bem afastada a tudo caladamente assiste.
Novela finda, a sonhadora, logo se entrega aos preparativos para dormir, dizendo-se tomada de sono. A outra ficará mais. Um outro programa, ou filme. Irá, assim, aquecendo o início de seu intermitente sono com pequenos cochilos ali na poltrona.
Recital
Havia sofrido algo sério. As pessoas em seu redor. A cabeça inteiramente no lugar. Pensava com clareza. E sabia quem ali cada um era. Via a todos. A sucessibilidade de pessoas que por ele passavam. Que ficam algum tempo a olhá-lo sem nada dizer. Ou dizia, ele, porém não conseguia nada ouvir. Demoravam-se mais alguns. Seus irmãos permaneciam, ora juntos, ora um, depois outro; outra. Falam-se entre si. Ele, porém nada ouvia, não obstante envidasse todos os sentidos. Nem mesmo conseguia a leitura labial. Coisa em que, quando moleque, era perito. Lembra-se que das apostas que travavam para ver quem não conseguiria errar a leitura, não perdia nenhuma. E o fato mais sensacional: aos assistirem um filme de cangaceiro. O nome não lhe ocorria. Todavia, cenas e atores pululam-lhe ali agora com vivacidade. Deu alguma pane. O som sumiu. Sucediam-se tão-somente as cenas. E aconteceu justamente numa cena de amor, de quase sexo explícito. As falações mudas do casal em decorrência do ato (quase todas lidas por ele) sem nenhuma reclamação, não foram ouvidas pelo público. Que, porém, tão logo diante de nova cena, pôs-se aos conhecidos e continuados protestos. Em meio a eles, surdiu uma voz (que nunca conseguiu descobrir de quem, ironia do destino: tão bom leitor de lábios) praticamente exigindo que ele fosse conduzido a ler ante um microfone a fala das personagens. A idéia deve ter parecido tão salvadora aos donos do cinema, seus velhos conhecidos, que, quando se deu conta perfeita de si mesmo, lá estava ele diante do microfone esperando a película ser ajustada para que começasse a sua transcrição oral da mudez pronunciada pelos personagens na tela. Sua eficiência, como decerto deveriam saber todos que ali estavam indo vê-lo, abrira-lhe convites de excelentes trabalhos em áreas afins. Tanto que escolher lhe fora algo muito difícil e mesmo pesaroso, já que com alguns muito simpatizava, mas somente um poderia escolher, pois tratava-se de ferrenhos concorrentes.
E agora, Santíssimo Deus!, exatamente numa situação em que, talvez mais do que nunca, tanto precisava daquela habilidade, não a conseguia. Parecia ouvir o zumbido das vozes, o sussurro de vozes muitíssimo refreadas, mas imperceptíveis, ilegíveis. A movimentação era moderada, entretanto contínua, naquele ritmo demoram mais uns, pouco outros.
Não sabia exatamente por que, mas tinha certeza de que não estava morto. Talvez, pela ausência geral de choros, de lágrimas furtivas ou explícitas. Talvez pela expressão geral. Não vinham risonhos, tampouco excessivamente graves. Aparentavam cordialidade entre si e olhar com discreta comoção postos nele. Sem muita fixedez, todavia. O cenário, de fato, não era de velório.
Mas também sem exatamente saber por que, não entendia que fosse igualmente de quarto de hospital. A começar pelo fato de que se percebia numa posição de quem está em pé. As pessoas aproximavam-se até um limite imaginário que faziam-nas guardar uma pequena distância a ele. Mas ninguém às suas costas. Atrás das quais não o que as amparasse ou as protegesse. Não era parede. Uma cortina marchetada, em tonalidade azul-clara, trespassado-a de esguias formas brancas esgarçadas como nuvens.
Então, num dado momento, não curto, vivia a impressão de que toda aquela gente o entrevistava. Ele lia as perguntas, já agora não pelos lábios, mas pelos olhos. Os olhos deles diziam-lhe, reparou, quando prestou fixamente a atenção em uma mulher cujo olhar pedia-lhe respostas convincentes e agradáveis. Equivocados, talvez, invertendo os órgãos, pois, não porque lia (lera) lábios, sabia ou podia ler olhares. Mas tal era a insistência que começava (com certa facilidade) a compreende-los.
Não atinava com as indagações, todavia. Eram disparatadas. Agora os olhares moviam-se rapidamente, a saraivar-lhe de perguntas e tantas e tantas, numa velocidade vertiginosa. Atendia a um, já lhe fustigava outro, um outro. Até que uma outra mulher, em passos de modelo, lá do fundo do salão veio vindo, saias esvoaçantes; veio vindo, cabelos esvoaçantes; veio vindo olhos negros nele pregados; veio vindo, boca semi-aberta em batom vermelho; veio vindo, seios volumosos oscilando e diante dele estacou. E após, o átimo em que tudo dela era movimento se imobilizou, entregou-lhe o livro.
Tratava-se de seu famoso poema que interpretaria em recital há horas esperado, num repleto recinto, por um público que lhe era todo expectantes olhares.
Indicação
Em riste, o indicador dá o horizonte.
Como uma seta rombuda mágica apontando a meta, dimensionando o espaço a se trilhar, vago espaço, o nada intacto. Ao qual a peregrinação vai desfazendo com súbitos e sucessivos eventos que, ao final, será o tudo tecido.
Em riste, o indicador denuncia o esconso, o clandestino, o desconhecido. Dá atraiçoadamente, comparsamente, a público o que à mercê de seu querer se fizera em confiança. A qual – quantas! ante tal gesto se desmorona.
Em riste, o indicador reduplica o discurso acusatório ferindo, dilacerando, muita vez, muito mais que palavras que se apagam tão logo pronunciadas, mas que ainda ali ficam percutindo na persistência reduplicativa daquele dedo mordaz.
Em riste, o indicador na palma da outra mão espetado, pedindo, propondo a suspensão de algo que se processa. Ato a que advêm reações várias. Mas que quase sempre causa grande expectativa. Sobretudo porque ali se enrista uma divergência, um reparo, uma questão.
Em riste, o indicador levado aos lábios estabelecendo o fim de algum barulho. Ou a preservação do silêncio. Sinalizando que ali não cabe a voz alta ou mesmo não cabe a fala. Que de humano convém apenas o silêncio. Que tão-somente se suporta o rumor, de todo irrefreável, da natureza:
“– Psiu!… Não acorde o menino. /Para o berço onde pousou um mosquito./E dava um suspiro… que fundo!”
O indicador em riste indicando na árvore o pássaro desabitual; não árvore, indicando a singularidade de um fruto; na árvore, indicando a presença da primavera; indicando, na árvore, a presença do inverno; indicando a presença de estranhos hospedeiros; indicando, na árvore, a acentuação de sinais dos idos anos.
O indicador em riste indicando, no azul entrecortado de nuvens, o celestial bailado dos urubus; indicando o cortejo cadenciado de paturis pipilando sua migração; indicando o casal de arara estridulando sua passagem; indicando a miríades de andorinhas borboleteando sua grácil dança branca-azul.
O indicador em riste indicando certos arco-íris ainda capazes de maior boniteza que os costumeiros.
De noite, o indicador em riste indicando certo singular efeito que a mesmice da lua sempre traz a quem procura ver. Em riste, indicando a melhor nitidez de alguma constelação. Indicando a precisa harmonia do Cruzeiro do Sul. O irresistível fulgor de Vênus. O apaixonante brisbrisar do brilho de Aldebarã. O magnífico clarão da estrela cadente explodindo feito fogos de artifício.
O indicador em riste flexionando-se pausada ou febrilmente, na indicação de um gesto chamativo já em si mesmo admoestador.
Os muitos recursos indicativos a que se presta o indicador numa partida de futebol: os vários sinais táticos do técnico. O sinal de imperiosa substituição de um jogador dentro de campo atendido e diagnosticado sem condições de continuar no jogo.
O indicador em riste que, combinado com o polegar, sinaliza a violência deflagrada a tiros.
O indicador em riste oscilando pausada, cadenciada ou sofregamente na indicativa negação coibitiva em múltiplas situações: nãos que muita vez calam mais fundo que os ditos a viva voz.
O indicador que, autômato, habilmente se flexiona numa perfeita combinação com o polegar e o médio, fazendo-se o motor da mais notável mimetização humana: a linguagem escrita. Que se reduplica no pincel. Que se reduplica na agulha. Que se reduplica no bisturi.
O indicador que, levemente inflectido, preme o mouse que o estendeem sua seta, fazendo surgir, na mágica tela, os webs das virturealidades.
O indicador que em riste ou inflectido toca nas feridas. A ferida do corpo, dorida, aliviando-se ante ao bálsamo que, carinhosamente, o indicador lhe fricciona.
O indicador em riste que, mordente, a ferida da alma toca, fazendo-a sangrar e avivando-lhe a chaga que não cicatriza, pois, quando menos se espera, o indicador em riste, feito um Sísifo, de novo a acutela com sua rígida pedra.
Com seu indicador em riste ou flectido o homem se traduz, se conduz e se transforma a si mesmo e ao outro, a cujo todo se denomina de natureza.
Não dá pra não falar de Copa
A Copa do Mundo continua dona absoluta das atenções do mundo. Afiança a mídia esportiva brasileira tratar-se da “Copa de todos os tempos”. E, ressalvados os exageros, não se pode dela discordar em vários pontos. Afinal, vive o mundo o instante mais depurado da tecnologia. Os telespectadores, por muito longe que da Alemanha estejam, sentem-se integrados à grande massa da platéia presente nos estádios. Vêem detalhes, às vezes repetidos (a jogada do gol, as ríspidas infrações, os sutis toques, os belos e os feios) que não só os espectadores presentes, mas também o próprio árbitro, que no campo se locomove, procurando estar sempre o mais próximo possível das jogadas, não.
Um ponto, até aqui, oitavas de final terminando, essencialíssimo, todavia, contraria essa afirmativa: a ausência do grande futebol, do denominado futebol arte. Um suceder-se de mesmices tem predominado. Jogadas previsíveis. E a força física evoluída pelo avanço tecnológico na área impõe-se predominantemente.
Imaginou então se essa sofisticação midiática contemporânea tivesse funcionado décadas atrás. Talvez, sim, ter-se-ia chegado às maiores Copas. Lembrou-se da já lendária história, muito conhecida e repetida no meio futebolístico, dos três chapéus aplicados por Pelé num jogo contra o Juventus. Três encobertas. Uma em cada jogador sem que a bola tocasse o chão. O quarto toque (sem que a bola tivesse tocado o chão) foi o chute desferido. Um gol fenomenal.
Como essa, outras eram contadas. Pouquíssimas haviam tido a sorte de um registro cinematográfico. Umas bicicletas de Leônidas da Silva. Uns dribles desconcertantes de Canhoteiro, de Garrincha, de Pelé. Outras dadas por geniais, como aqueles inimitáveis chapéus, compõem o repertório lendário do futebol magistral. A tecnologia requintada de agora é que se encarregou de materializar, em virtual imagem cinematográfica, no recente filme-documentário sobre Pelé, aquela jogada, tida como uma das máximas do gênio da arte da bola.
Outra lembrança, mediante essas, não obstante um pouco destoante delas, que, decerto, nunca mais irá se lhe apagar. Menino de cidade pequena. Camisa aberta o peito (na verdade andava sem camisa quase todo o tempo), pés descalços e a bola como meta, como companheira. Após a escola, a bola, Após qualquer obrigação caseira, a bola. A bola nas peladas das ruas. A bola em certos quintais de amigos. A bola nos vários campinhos. A bola no estádio de futebol da cidade. A bola em casa, com os irmãos, com os amigos. Sozinhos, ele e a bola; a bola e ele. A bola nova de “capotão” (couro) sempre como o mais cobiçado presente.
E todo envaidecido andava ante aos elogios e comentário geral da cidadezinha que o apontavam como o melhor jogador dos garotos da sua geração. Por certo ali surgia um futuro craque do futebol brasileiro.
Não gostava quando alguns torcedores e admiradores, em certas partidas, atribuíam-lhe a desqualificação de “mascarado”. Não era. Sempre se considerara humilde. Nunca se apresentava soberbo. O que verdadeiramente insistia em fazer e de que a acusação de mascarado não o fazia recuar era criar jogadas, toques, dribles. Não suportava ficar repetindo uma jogada já estereotipada (como essa tal pedalada de hoje!). Quando acertava, vibravam. Se errava, mascarado! Assim semelhante à representação feito a voz global Galvão Bueno: à jogada refinada, ousada não bem sucedida afirma depreciativamente que o jogador “fez lá uma graça”.
Como todo menino apaixonado por futebol (e também muitos homens) era um colecionador de figurinhas de jogadores da Copa do Mundo. Quem completasse o álbum com as figurinhas-jogadores carimbadas e figurinha-jogador assinada ganharia um rico prêmio. Vendidas em forma de bala, cujo último papel do invólucro era a figurinha. Perspicácia comercial com a sedução da surpresa. As difíceis: Zizinho e Pelé, carimbadas. A dificílima: Moacir, assinada (jogador do Flamengo que fora substituído por Pelé em 58 – talvez fosse essa, não se lembra mais, a única e frágil justificativa para isso).
Certo dia, saiu do bar em disparada, gritando. Havia tirado Moacir! Quando se reouve a si mesmo, estava diante do pai que num espanto igual, mas aquietado, tinha o aceso olhar fixo na preciosidade. E a explicação veio logo depois. O dono da venda a que devia duas compras mensais, há tempo aguardava tão-somente aquela figurinha.
Tornado a si, concluiu que, se aquele hábito hoje persistisse, certamente os jogadores carimbados seriam um Zidane em fim de carreira, um Riquelme sem entusiasmo, um Ronaldinho Gaúcho medroso. A figurinha assinada, sem dúvida, seria um Ronaldo Fenômeno gordo, não obstante fazendo os gols suficientes para levá-lo à conquista de mais um galardão: o maior artilheiro de todas as Copas.