Irrealismo

O cara! Moto própria para tal façanha. Daquelas para os ralis da vida: picadas em matas cerradas, estradas esburacadas, enlameadas; estradas de areiões extensos, densos; estradas sinuosíssimas com aclives/declives feitos cavaletes emparelhados. Motocicleta com feição dessas que se vêem em noticiários, competindo em programas esportivos radicais. Tantas quantas cilindradas, porte cavalar, amortecedores caneludos, pneus garrudos, rodas suntuosas.
A máquina! Cara talhado. Taludo. Jeans. Botinas. Descamisado. Pêlos ruivos pelos peitos; pelos braços; no rosto, em forma de barba imberbe; na cabeça, cabelos alongados em penteado tipo despenteado. Não magro. Nem gordo. Típicas luvas nas grandes e impetuosas mãos.
O palco! Um grande descampado, decerto mapeado em muitos terrenos baldios em estado de terra e grama à espera do que lhes destinarão seus proprietários. Os quais, por certo, também esperam, especulam, transacionam. Um vasto descampado ainda com nuances de quase nenhuma intervenção civilizacionista em sua constituição nativa. Da testada ao fundo, um acentuado aclive conformando uns trezentos metros mais ou menos. Enlarguecido em uns duzentos. Situado em bairro cujo enobrecimento vai dia a dia estendendo seus tentáculos, forçando os nativos moradores raquíticos a irem assentar-se em periferias que lhes sirvam e lhes caibam. Defronte, margeia-o a bela avenida ampla com ida e vinda do Jardim Tal – que bairro enobrecido passa a ter essa denominação – ao centro. Canteiro de ornamentação que separa as duas pistas com gramado, árvores em crescimento, iluminação pública moderna.
O cara com sua máquina, decerto, em incerto dia de seus aleatórios passeios, encontrou aquela avenida. Decerto percorreu-a com sua máquina possante roncando barulhenta, paquerando os que também ali faziam o mesmo, os que ali faziam cooper. E deu com aquele terrenão comprido, enorme, inclinado, escancarando seu verde e ondulado dorso.
Decerto pôs-se a mirá-lo, a admirá-lo, e o desejo de tê-lo deve lhe ter instalado a idéia de percorrê-lo com sua máquina. E ao fazê-lo, conheceu do terreno todos os seus acidentes. Pronto. Daí a determinação de entregar-se à ventura de executar um rali todo ele, único. Rodar vertiginosamente, em velocidade forte, investido de impetuosa coragem, os meandros daquele descampado de saliências e buracos. E ir e vir, em contornos e malabarismos que lhe vão ditando a ousadia do desafio.
E o amplo espaço descortinado pela avenida exibia um ruivo motoqueiro grandalhão, dorso nu rebrilhando de suor sob o sol da tarde, que fazia rugir em contornos, derrapagens, pinotes e coices sua altiva motocicleta dourada no caloso dorso daquele âmbito.
Era um sábado. Dos muitos transeuntes, vários se detiveram a ver o espetáculo. Moradores e freqüentadores dos botequins próximos também. O cara e sua máquina pareciam um. Concentrados em seu ato, operavam vigorosamente comandante e comandado. A montaria relinchava, galopando com furor. Corcoveava, pinoteava, escoiceava, quebrava súbito para um, para outro lado em obediência fidelíssima às ordens das rédeas e esporas de seu jóquei.
Surdiram, em alguns momentos aplausos. Os quais o ator, ou não ouvira, por concentrado inteiramente em sua íntima e ciosa interação com a parceira, ou com o silêncio sustentado desaprovava aquela intromissão de quem deixa seus afazeres para meter-se no de outrem. Depois de duas ou três manifestações da galera curiosa e intrusa, o certo é que o cara veio do fundo à testada com sua máquina em marcha lenta e em linha indiana. Entrou na avenida e foi-se indo embora sob uma recriminante vaia dos desocupados, que teriam de tornar à maçante rotina.
Domingo à tarde. Lá estavam o cara e sua máquina. Tais quais os de sábado. Como se não tivessem ido para casa. Todavia, parece que a atração imediata da platéia foi a chegada de duas viaturas da polícia militar.
O boletim de ocorrência informou que, preocupados com o risco de vida do cara, moradores circunvizinhos formalizaram a denúncia.

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