O que nos diz respeito

Os fragmentos de horizonte persistentes não nos dizem respeito. Recompostos, restabelecerão os enigmas incuráveis. Tornarão a dependurar os desígnios solertes para que renovadas esperanças retomem os caminhos a seu encalce.
Mesmo o arco-íris indisponível com sua indumentária engalanando o arco-da-velha, eterna maga, que surde efêmera, ostentando sua multicolorida iluminária, arrebatando olhares encantados e empapados de sonhos, mesmo esse arco-da-velha íris eterno não nos diz respeito.
O azul aberto em infinito, avesso ao fixo, e indo para além do visto, tradução imediata e necessária aos sentidos humanos do vácuo cósmico com seus astros-naves, sonâmbulos perambulando à toa, indo para lugar nenhum, não nos dizem respeito.
Esse vagar sonâmbulo da Lua dando à Terra luz e sombra, investida de Sol compondo o dia, e que, ao vedá-lo, esparge a escuridão da noite, permitindo o acender-se de estrelas tremelicando feito bilhões de pirilampos, não nos diz respeito.
O aparente caos feito de luz e umidade; árvores, cipoal, folhas, flores, em que habitam animais imagináveis e inimagináveis em plena convivência determinada pela lei da selva, desde os mais ínfimos insetos às descomunais girafas e elefantes, não nos diz respeito.
O complexo tempo, esse agente controverso, que não é moço, nem velho tampouco, que único sendo muitos e muitos, de uma indivisibilidade absoluta com suas manifestações concretas, que se fazem através do dia e da noite, da madrugada ao crepúsculo; do inverno, com seus frígidos ventos, ao verão, com seus raios e trovoadas e, em meio deles, a primavera.
A primavera é quando o tempo se dispõe a mostrar suas graças. Então esparrama pelas ramas das plantas sua face: mil flores crivadas de outros tantos mil arranjos em tonalidades de cores. A primavera é quando o tempo escancara sua infinita alegria feita de si, estampada para si: o tempo se ri a si mesmo. Também assim visto, isto não nos diz respeito. À natureza, ao cosmo, ao tempo, enfim, igualmente nada dizemos respeito, senão como todos os outros seres.
A absurda e criminosa deterioração da natureza com o desmatamento vertiginoso, com as poluições assassinas das mais variadas ordens no ar, na água e no solo; a fome voraz genocídia aumentando ainda mais, quanto mais se sofistica a vida humana em tecnologia (depuração de sua inteligência); a discriminação na detenção dos recursos para a sobrevivência, que mais alarga o fosso entre os chamados ricos e médios de um lado, e a escandalosa maioria de pobres e indigentes de outro; o progressivo esgotamento de fontes de vida, cuja tragédia maior é o avançado caminho rumo ao fim da água potável; a todas essas ações, e atos, e procedimentos a natureza, o cosmo, o tempo são indiferentes.
A nós, os homens, apenas e tão-somente elas dizem respeito. Ao cabo, apresentarão as conseqüências. E uma vez extinta a vida por completo, irá por certo processar-se em milhões ou bilhões de anos na esterilidade, como, afirmam, já o fez.
Depois, depuração consumada, estabelecer a possibilidade de um outro ser inteligente, escoimado dos genes das estupidezes todas dos anteriores e faça já aqui na Terra o Céu prometido e pretendido.
É certo que a cada início de ano, a cada Ano Novo, ficamos coçando, roçagando a inteligência, a alma, pensando quem sabe ainda é tempo. É que nos impulsiona insistentemente a isso dois talentos divinos que nos dizem respeito e que, por mais que teimamos, não nos deixam: crença e esperança.

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