Beslan

Beslan
Data 10/set/2004

     É certo que o homem é esse eterno informe. Que obsessivamente cava, escava, lavra na ânsia de se perpetuar para sempre. E então, vivo, descansar por todo o sempre.
Não quer o homem mudar. Quer ser. Quer mineralizar-se como algo, minério impossível de quaisquer violações. Forma única e definitiva. Perfeita. E como a perfeição, ante o que quer que seja, incapaz de violação.
O homem passa a vida obsedado pela dor e culpa do paraíso perdido, cujo lenitivo e remissão consiste em reavê-lo. Ainda que nada saiba desse paraíso, senão que o perdera. E que o perdendo perdera-se. Dado à condenação de errar pelo sumo bem, seu desconhecido. Todavia, como a tocha da acesa chama, de geração em geração, não cessa de buscar o seu cume.
Sucede que tantos são e mesmo de certo modo muito mais, quantos os percursos, os decursos. Os decursos tornam o homem, na sua trajetória, uma viva e inacabada metamorfose. E dessa metamorfose, o informe em forma de homem que de seu só não perde a fome, a sede. Seu motor maior.
Construir-se como sapiens, como se designa, capaz então de fazer brotar o pão de sua força. A que gera por meio de seus neurônios a capacidade inventiva. A que o dota, na Terra, da descendência direta de Deus. A Terra que se viu então por homens divisionada. A Terra ficou África, Ásia, Europa, Américas. Continentes com seus países orientes, ocidentes.
A fome como ordem. E os países com suas posses. Com seus ricos, com seus pobres. Com seus mendigos. E os países com suas divisas, com suas formas de vida. A riqueza concede o dom do poder. O poder de prescrever como deve ser. O poder aviando receitas de como não padecer. E os países ricos, movidos pela condição de riqueza, atrelando-se. Que os países pobres possam assim ser mantidos como seus grandes sustentáculos. E a estratégia melhor consiste na oposição deles, pobres, entre si. Fomentar ilusões de crescimento. Aumentar-lhes a dívida, os serviços da dívida, os juros dos juros da dívida. Fomentar-lhes as grandezas inócuas esteadas em moralismos anacrônicos, patriotismos ingênuos, religiosismos pervertedores.
Incapaz da condição de todos com todos; de todos para todos; de dividir para não faltar, foi o homem deixando de ser aldeia, estaqueando terras, mapeando territórios, se denominando dono, se tornando proprietário. Em nome disso, em nome daquilo.
A discórdia, as desavenças, as guerras. As pequenas e incessantes guerras. As grandes guerras. As devastadoras pequenas e grandes guerras. Nazifascimos à parte, faziam-se, contudo, com ética, certa dignidade e respeito humano o mais possível. Sim, toda uma convenção estabelecida. Fugia-se à desmoralizante e humilhante situação e violação da mesma. Prisioneiro de guerra tinha certos garantidos direitos.
Tempos idos e vividos. Guerra é guerra tornou-se a moeda justificável de inimagináveis atrocidades. Claro que o mundo cão não é cão. Claro que o mundo animal não é animal.
Cão é o mundo homem. Animal é o mundo homem. Feroz é o mundo homem. E o é porque pensa, porque tem consciência. Única espécie autodestrutiva.
Oh! Desrazões que a quaisquer razões aturdem! Que crispado de horror humano se pergunta: então se fez tanto, tantos suores, e lágrimas, e sangue, e trabalho, e privações e dores para se chegar a esse fosso, esse lodo, esse escroto, essa degenerescência?

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