Uma cidadezinha qualquer

Data 11/fev/2005

     Uma cidadezinha. Todavia muito mais que uma cidadezinha qualquer. Havia, sim, bananeiras, laranjeiras, pomares, cachorros e burros que, de vagar, devagar iam, vinham. Havia, entanto, muito mais. De tanto não ter nada, tinha muito mais. Cidade mesmo, não quase.
Tudo à base de postos. Um posto da prefeitura municipal que ficava noutra cidade. Aliás, ficava na cidade. Um posto policial, que a delegacia de polícia também. Um vereador sem câmara, que era daquela cidade. Um posto telefônico em que uma telefonista executava as ligações e as recebia. Um posto de correio sem telégrafos. As correspondências –as cartas –, ainda que demoradas, aconteciam.
Uma igreja católica apostólica romana, cujo padre daquela cidade aparecia, algumas vezes, para os serviços religiosos. Porém, uma protestante atuava com desenvoltura (e os pastor residia ali)
O índice de que era um povoado do estado paulista: uma escola primária, e uma escola secundária de ensino ginasial e colegial. Todos funcionários do governo do Estado. A cidadezinha os privilegiava. Eram as únicas remunerações estáveis e constantes. Crédito no comércio: algumas vendas, um mercado, um açougue de carne de matadouro, alguns botecos, algumas lojas de bijuterias e tecidos; os solteiros, bons partidos, cobiçados e disputados.
Eram, pois, os professores os sábios do lugar. Ninguém se atrevia publicamente defender uma posição, senão citando nominalmente um deles. Eles, que não desdiziam, bem sabiam do precário saber que exerciam.
Por circunstância, talvez, pelo precário de ser, pela inextrincável condição do simples, ali, o ensino, se fizera anos, anos antes como um sistema, de fato, interativo. Professores e alunos, pais e não-pais conviviam permanentemente. Na escola. No açougue. No mercado. Nas vendas. Nos botecos. Na quadra esportiva da escola. No campo de futebol. Nas festas religiosas, pagãs, folclóricas, sociais.
Não-cidade, pois sem energia pública, não obstante circundada por dois enormes e históricos rios; pois sem serviço de esgoto, de água encanada e tratada. E os dois grandes rios ali, tão perto, que, quando vazavam nas cheias, quase tomavam algumas ruas. As ruas se faziam, muitas delas como se fazem caminhos naturais pelos assíduos ir e vir de homens e animais.
A iluminação pública precariamente se fazia à força de um gerador a óleo diesel. Fragílima claridade mal tingindo a escuridão da noite, cuja abóbada descortinava um céu de estrelas e luar visto assim em lugar algum. Ali as estrelas pareciam sussurrar de tão fulgurantes. A resplendência de luar inigual. Um imutável sorriso esplêndido. Aquelas tíbias lâmpadas de baças luzes não eram capazes de ofuscar aquela plenitude de luar de sertão.
Não-cidade. Pois onde diziam ser o seu centro (quanto mais então nos seus arredores), ouviam-se os grilos, as cigarras. Os vaga-lumes ziguezagueando seu pisca-pisca esmeralda.
O ar feito de brisa ou leve vento das noites de verão fortíssimo recendia o inebriante aroma de mata. Que com os rios e o muito após os rios aquele povoado circundava.
Não-cidade. Pois seus habitantes, econômica e culturalmente simples e remediados. Dois ou três abastados. Nada de os necessitados, tampouco mendigos. As divisas se faziam por cercas de balaústre ou tabocas. Dormia-se com janela à brisa. Não havia notícia de ladrões. As festas culminavam com bailes de terreiros em barracos armados com bambus e lona.
Mas a não-cidade continha traços de cidade: havia pessoas proprietárias de automóveis. Havia combis-lotação. Havia camionetes-carreto. Havia um posto de uma empresa de ônibus cuja linha ligava a cidadezinha à ultracivilização.
Depois, a não-cidade foi tomada por megaempresas que, em pontos de seus rios, erigiriam grandes hidrelétricas. A cidadezinha, desde então, envaideceu-se. Deu pra pabulagem: logo, logo se tornaria uma grande cidade grande.