A vida maravilhosa ou malvada; estrepitante ou silenciosa; venturosa ou desventurosa; famosa ou anônima se encaminha para o seu fastígio único e enfático: a morte. Em que pese na sentença o tom lutuoso, tétrico, é assim.
Mas esta dádiva cuja expectativa é dar à morte o mais longo adiamento possível, dela ir ganhando as partidas, embora se saiba ser-lhe a vitória final, é o grande mistério: a vida. A vida que brota de um óvulo, de um ovo. E em forma de homem é ente dotado de inteligência. Pensa, age, cria, inventa, transforma, se emociona, chora, ri, sofre e ama. Em forma de bicho, age. Ao que se sabe, não pensa. Logo não cria, não inventa, não transforma. Age movido a sede, a fome, pelo frio, pelo calor. Porém há evidentes manifestações de dor, de irritação, de medo. Se domésticos, mais depuradas ainda. O contato, a convivência com os homens decerto.
E os cães apegados aos homens apegados aos seus cães figuram como os mais próximos ao desenvolvimento de uma inteligência animal possível e provável. O cão de uma casa é um animal humano. Tem a vida observada, interacionada com os componentes da família. Seu crescimento; seu desenvolvimento; sua infância, como a de uma criança, composta de peraltices que provocam graças e broncas. Aprendendo o modo de conviver em família. Aprendendo a comer de sua comida, a beber de sua água, a recolher-se em seu abrigo, ao mesmo tempo em que a natureza o vai movendo em seus dotes de animal canino: estranhar e latir para os que não da casa; não gostar de gatos, incondicionalmente, os que não da casa; aos dela suportar.
A sua vida fora povoada de cães. Não se lembra ter havido casa de tios, avôs em que não os houvesse. Todos tinham o seu cão, ou os seus cães. Cães com os quais as pessoas mantinham um relacionamento de afetividade. Falavam a eles. Conversavam com eles. Era uma família que passava como herança tácita o amor pelos cães. A inconcebível condição de não se ter em casa um cão. Casa sem cão é casa em falta, casa incompleta.
Também se lembra de outro aspecto comum e predominante na questão cães dos familiares: a preferência pelos de grande porte. E como fora um tempo em que cães se ganhavam de alguém, algum dono de cadela, que cruzada com um cão de outro, dava sua ninhada, cujos filhotes às vezes já eram encomendados desde a gestação, os cães eram objetos de ajustados, bons e honestos acordos. Não se tinha notícia, não se ouvia dizer de negócios de cria e venda de cães. Cães eram, quando muito bons e enternecedores presentes. Exceto, verdade se diga, as crias de cadelas vira-latas sem nenhum prestígio, ou moradoras de rua.
E o berço lhe transmitira a irrefutável necessidade de conviver com cães. E, homem seguindo o ciclo da vida, os foi tendo. Apenas não seguira o rigor do figurino preservado até uma certa geração. É que gostava também dos cães pequenos. E os teve conjuntamente com os grandes. Outra ruptura com o figurino, o ter um, quando muito dois. Ele os tivera aos três, aos quatro, aos cinco. Muitos dos ortodoxos parentes desaprovavam declaradamente tal procedimento. Ele rebatia dizendo das informalidades e casualidades. Os cães aconteciam em sua casa. Cada qual tinha uma história de origem. Origem nunca programada por ele. E os seus familiares estavam envolvidos em cada uma das histórias de aparecimento de cada um dos cães. O que parecia fortalecer ainda mais os laços afetivos entre todos eles. Acabaram por aprender que um cão era um solitário. Dois era pouco. Três era bom. Cinco era ótimo. Cada cão com seu modo de ser diferente do dos outros. E a somatória daquelas diferenças era a causa da satisfação familiar de com eles conviver. O que desarranjava, causando consternação geral e mesmo lágrimas em uns, era quando chegava a vez da morte ganhar a partida definitiva. Fato ocorrido há pouco com um querido pastor de dez anos de amorosa convivência. |