Data 19/abril/2004 |
Então a velhinha animada à espera de sua vez era toda tagarela. Acima da escala dos demais, fala alta. Ria estrepitosamente. Transpirava felicidade. A que ganhava em riso estabanado e voluntário. Via-se que a espontaneidade a movia.
O forte em presença era mesmo de anciões. Os não-anciões, bastantes, eram seus condutores e acompanhantes.
Conversar para costurar o tempo. Para torná-lo com algum sentido entre o intervalo que ele com seu nada demarca. Senti-lo vivenciá-lo em seu vazio de silêncio é algo decerto insuportável, principalmente aos idosos.
O vazio do silêncio aciona o descortinamento de lembranças e recordações. O que por certo dá à vida o tamanho dá escassez de seu tempo. O que conscientiza a velhice de que o intervalo entre seu instante e o limite tem a volatilidade das nuvens brancas sob o límpido azul de céu.
Então a velhinha expandia, talvez impensadamente, movida pelo impulso do instinto acionado por esta pulsão psíquica. Falava maquinalmente. Ria ridentemente. Mas muito havia de não contágio. Muitos sorumbáticos rostos encarcerados em preocupação. Os quais por certo entendiam naquela velhinha uma insanidade anunciada, ou assanhamento ridículo, ou uma desconsiderada forma de extravasamento do medo.
Os entre uma e outra extremidade mais enxergavam. Mais notavam a todos e a si mesmos. Sopesavam o medo e a esperança. Enterneciam-se com algumas expressões. Compreendiam certas atitudes. Penalizavam-se com os abatidos. Suportavam com o sorriso da tolerância a velhinha a ponto de não recriminá-la, tampouco incentivá-la. Reconfortavam com palavras afáveis, com afagos, seus íntimos e próximos.
E todos, quando aproximados devidamente pela acentuada espera, passado o período de mútuo conhecimento necessário, se contavam uns aos outros. E as histórias variavam em extensão e dramaticidade, dependendo do temperamento e humor de seu enunciador. E assim de algum modo se reconfortavam entre si.
A velhinha tinha ainda o dom do relacionamento fácil e o inconformismo da espera estática. E ia como um sacerdote afável, um candidato à eleição, um pedinte à cata de tostões, percorrendo os demais pacientes, levando uma palavra de estímulo, uma risada. Esse talvez fosse o modo seu de afugentar o medo que não menos a acometia como aos demais.
Muitos que, como ela, ali estavam para a segunda vez, diziam lembrar-se que da primeira vez ela não procedera como agora. Era uma discretíssima velhinha lá no seu canto, acabrunhada, quase todo o tempo cabisbaixa, quietamente conversando com sua acompanhante.
Lembravam-se que foi então de volta do serviço que tornara de olho limpo e evidente brejeirice senil na face. Falando alto. Aleatoriamente dispensando risonhos cumprifmentos.
E fora agora, de volta para a limpeza do outro olho que dera de ser o antagonismo daquela velhinha da primeira vez. E a razão também se soube logo que as suas perambulações de lugar em lugar foi espalhando.
Era que ao mesmo tempo que punha o moral dos receosos para cima, afirmando que não sentira dor alguma, contava ter vivido uma indescritível visão.
Certo céu azul no qual, vertiginosamente, movimentando-se enormes estrelas de mil cores (lindas, precisavam ver!) brilhavam ziguezagueando feito umas malucas belezas. E ficou muito desolada, quando o médico apagou tudo ao despertar-lhe dizendo que terminara e que tudo estava bem.
Ansiava por reencontrá-las agora na segunda operação. Não via a hora de sua vez. Vão sem medo! Vocês verão estrelas enormes.
E veio a vez segunda da velhinha feliz. Todavia o que se viu no retorno pós-operatório foi aquela velhinha da vez primeira: discretíssima e cabisbaixa.
E se ficou com a sensação de que o céu azul de enormes estrelas multicores não compareceu ao segundo encontro.