Homocaos

Data 28/jul/2005

O mundo em reboliço. Ou o reboliço do mundo aos nossos olhos. Aos nossos ouvidos. Mudou o homem? Ou mudaram-se seus conformes?
O mundo do avesso? Ou o avesso desse mundo justaposto ao seu oposto? A extensão do homem cada vez mais. O homem a passos grados, de ano em ano, de século em século, estendendo os seus tentáculos. A Terra, seu criadouro, majestosa esfinge pródiga e prodigiosa, túmida de mistérios e enigmas, a sedutora permanente.
Irremediável possessor; compulsivamente conquistador, o homem. Dilacerado por sua obsessão em desvendar-se, em atingir o mistério de sua trajetória imponderável; inconformado com sua individualidade efêmera, com sua subjetividade limítrofe, o homem.
E o seu subjetivismo gerou sua diversidade. O olhar de cada homem concebe-lhe a face do mundo; concebe-lhe os enigmas do mundo. São muitos mundos esse mundo único. Onde há fundos e sem-fundos; límpidos e imundos; deuses e diabos; nadas e paraísos.
E o homem assim sendo é bem menos interação. O confronto o estabelece e o desaparece. O confronto o forma, informa e o deforma. O viés do mundo consubstanciado pelo gozo de seu conforto. A esfíngica resistência da Terra instigando suas descobertas; que a tornam cada vez mais menos natureza. O homem com suas angústias; com suas indústrias. O homem com suas lesões, com suas devoções. O homem escavando seu infindo e desconhecido (definitivo). O homem consciente de que talvez para todo o sempre se desfaz, porque o atormenta a inércia da paz. O homem consciente de que vem de fatídica insaciedade sua inacabada porção de ferocidade. O homem com cujas dúvidas se conduz. O homem em sua peleja impelido por seus sonhos, desejos, medos que intrinsicamente o adejam.
A Terra que muita vez dá sinal de incrédula parece recorrer em vão a muitas formas de dizer que tudo isso muito a aterra. Decerto por se supor, sem ser presunçosa, de si absoluta senhora. Daí bem saber que a tudo e a todos em seu seio sobeja, ainda, seivas à vida. Mas também decerto presumiu que teria existências pacatas em formas animalesca e vegetativa.
Então decerto não contava com uma desarmonia, da qual despontasse uma linhagem animalesca estranha. Cujos nervos, músculos e sangue vibrassem uma viva energia nervosa que resultasse em atos abstratos, elaborados numa caixa cefálica de pensar.
E tais, contrários a todos os outros demais, fossem molestar seu o estaus-quo: cosmos que após o caos se fez. Auto-suficiente, ela todos proveria, sem exceção, conforme os mecanismos de equilíbrio e harmonia com que se estabelecera. A vida e a morte; o ar, a água, o fogo. Tudo em si encontrar-se-ia. Bastava a eles moverem-se em busca da comida, do abrigo e preservar-se do predador inimigo.
Entretanto, aquela estranha linhagem animal decerto a foi surpreendendo. Seus procedimentos em exclusiva atenção aos seus próprios provimentos foram irreversivelmente sendo de modo a incomodá-la. Do incômodo a transformações agressivas. Destas a intervenções transgressivas.
Aos poucos e progressivamente, o animal homem veio, cada vez mais ávido, modificando dela o estado-cosmos. Onde antes era tudo terra, água, matas, bichos, pássaros, ele foi derrubando, afugentando, desviando. E foi erguendo cavernas. Paliçadas. Ocas. Tabas. Castelos. Muralhas. Casas. Prédios. Estradas. Pontes. Carroças. Carros. Trens. Automóveis. Metrôs.
Foi o homem impondo-lhe ao seu estado natural o dele estado artificial: social, econômico, político, cultural, tecnológico. Foi o homem estabelecendo na Terra um estado de coisas: um homocosmos. Complexo. Dividido em inumeráveis compartimentações categoriais: países, classes sociais, religiosas. Homens pobres, ricos, mendigos. Terras divididas entre propriedades de alguns. Impróprias a muitos. E esses multíplices divisionismos o foram refinando em exímio homicídio. Logo a prática do genocídio que alcançou a alçada do banal. Extermínios dos mais comezinhos aos sempre espantosos. Cometidos por grupos, indivíduos, países com as mais sofisticadas armas.
Parece que à beira do impasse ante a decepcionantes revelações sobre si mesmo, não obstante o estágio de seu homocosmo, o homem se conduz ao caos. E de roldão levando todo o resto da terra, precipitando a Terra a seu novo caos.

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