Papassa

Data 08/Abr/2005

     O Papa fora anunciado como morto. A maior parte da terra estava afetada. A mídia elegeu o fato como prioritário. Tudo relativo ao santo padre morto. Ocupou os nobres espaços de jornais, revista e televisão. A precoce condição de orfandade da infância. A trajetória operária do moço. Os matizes clandestinos da formação sacerdotal num país sob as ordens de uma ideologia comunista. O sacerdócio. O bispado. O cardinalato. E o dado e havido como a grande surpresa: o papado. Um quase assombro, rememorou a mídia. Afinal, era uma pessoa (embora ungida pelo Espírito Santo) oriunda de um Leste Europeu comunista.
E João Paulo II pontificou vinte e seis anos! Papa popular como nenhum. Papa corre-mundo como nenhum. Visitou deus, Raimundo e todo mundo. Ousadia reverenciada. Foi à sua Varsóvia dar o beija-mão a Lech Walesa. Foi a Cuba incomodar o Comandante. Mas também lá deu outra na ferradura: condenou os embargos de toda ordem comandados pelos EUA ao povo cubano. Papa quase assassinado. Papa cujos pendores a ator, que também buscou um dia ser, firmavam sua base de pastor do povo de Deus. Papa conservador. Deu ao dogma da Igreja a guarida necessária para resguardá-la com seu poder. Não ao aborto. Não ao anticoncepcional. Não à Teologia da Libertação. Todavia, portador de um discurso oposicional à proliferação do lucro produtor do crescimento da riqueza que aumenta ainda mais o desenfreado desdobramento da miséria. Clamou pelo fim à fome do mundo. Exortou as reconciliações entre os mais recalcitrantes adversários e inimigos. Para que a paz prevalecesse. Palestinos e judeus. Crentes e ateus. Como exemplo de ação de quem prega, num gesto de desprendimento e perdão, foi ao presídio perdoar e abençoar seu algoz. Cujo golpe pode ter desencadeado ou precipitado sua progressiva e irreversível debilitação física. Atribuem-lhe até a condição de a mais poderosa marreta das que esboroaram o muro de Berlim.
O Papa está morto. O mundo aparenta-se comovido. Suas janelas não transpiram outra coisa. A Polônia pára para velar seu filho mais ungido. A cidade do Vaticano é o palco para o qual todas as atenções estão voltadas. As maravilhas de Roma ficam por hora suplantadas. Que seu povo e os que a ela acorrem, completamente obnubilados, vão compor a gigantesca platéia de órfãos e enviuvados.
A basílica de São Pedro é o sóbrio e requintado cenário. Ali atua, em grande estilo e gesto único, num drama inigual, o ator Karol Wojtyla, investido em sua indumentária cardinalícia. É a sua última peça. A mais modesta. Mas que se reveste do evocar, do avivar as outras encenadas em vida, dentre as quais, decerto, se encontre a obra prima. Por uma semana Wojtyla representará esse ato único vinte quatro horas ininterruptas. Em sessões contínuas, cujas platéias, tanto quanto ele, estarão representando. Representando seus recalques. Representando seus medos. Representando sua insegurança. Representando suas neuroses. Representando sua potendade. Representando uma solidariedade. Representando seus equívocos.
A peça recalca e inculca a milenar sentença humana. Ou seja, a Igreja (as igrejas) e a laica riqueza vestida e revestida de reis, nobreza, generalatos, imperadores, presidentes enfecham o anel eterno do poder. Em torno do qual gira como pode a plebe, o pobre, o mendigo, o miserável. Aos quais, em certas acertadas ocasiões, permitem freqüentar a platéia com certas performances de palco.
O vigário de Cristo está morto. Por que lamentam e se enlutam seus fiéis, se o dogma prescreve tratar-se nada mais do que uma passagem, uma ascensão?: “O nosso santo padre voltou para a casa do pai”; “Ele já vê e toca o Senhor”; “Mulher, quem procuras, já aí não está. Ele subiu ao Senhor”. Que os vigaristas o façam, se compreende.
Então seriam os gestos, os atos, as atitudes de aplausos, de louvores, de júbilos. Afinal, a crer, trata-se de uma morte para a vida, conforme se diz estar escrito.
Então não se trata de uma tragédia em vida, como as que se viram e que se dão, quando menos se espera. Que causam estupor, dor, impotência, raiva, tão incompreensíveis, injustas, inumanas são. Haja vista esta recente chacina em Nova Iguaçu acometida!