Data 18/mar/2005 |
É de muitos antanhos que a roupa serve ao homem. Serve-o menos em proteção. Mais, muito mais em representação. Ao vestir-se o homem se despe da condição de pura natureza. Atesta sua sobrelevação aos seres demais. Com a roupa acoberta seu estado animal. Seu pêlo e couro passam a pele, epiderme.
Talvez, a princípio, a descoberta dela fez-se por necessidade. Aprendeu o ancestral que o couro do bicho de que se alimentava dar-lhe-ia ao corpo proteção. Quanto mais foi engendrando outros recursos mais eficazes para esse fim, mais destinava à roupa a função de ornamento.
Então, ao vestir-se o homem despe-se de sujeito natural. Veste-se de sujeito social e, enquanto assim, é um permanente e dinâmico multissigno vagante. Por mais que não se dê conta, embora quase sempre o dê, ele pronuncia-se por suas roupas, seus trajes.
A evolução do traje tramita por larga, complexa e longa história. Nada no traje é indiferença e gratuidade. Aos escravos cabiam roupas rudes e grossas, cujos desgastes demandavam extensas durabilidades. Bastava cobrir-lhes algumas inevitáveis partes. Desnecessário que os pés calçassem. Que a cabeça cobrissem. Bobagem. Dinheiro a mais na algibeira. Escravo negro tinha carapinha e couro à prova de sol e friagem.
Às majestades, aos nobres, aos bispos, papa e padres se reservavam farta roupa, fina roupa, as quais, emblemáticas, pronunciavam uns rituais altivos, dados aos desígnios dos bem-aventurados por Deus-pai, Deus-filho, Deus-espírito santo.
Os trajes enunciando as senhoras madames sobre cujas finezas, sobre cujas delicadezas, sobre cuja tez acomodavam-se cambraias e sedas, ouro e pérolas, pelicas e cromos – solertes mulheres a ostentar e acobertar seus senhores.
As eternas mulheres damas. Prontas. Nunca em aparências inferiores àquelas. Sempre dóceis e amáveis. Trajes leves, livres daqueles arredondados armados até os pés. Vaporosas, resguardando-se de indecorosas. Sensuais transparências insinuantes. O bastante para que aqueles maridos acorressem a seus requisitados e insubstituíveis serviços.
Havia, sim, o seu contraponto. Onde os trajes menores atestavam a lida com a menoridade social. Ao contrário daquelas suas próximas, eram tidas e havidas por putas da zona do meretrício. Andavam seminuas, bêbadas. Quase sempre por desilusões amorosas, maus tratos, abusos. Putas mal pagas e sujeitas a toda ordem de sacanagem. Cadelas dadas a matilhas de perdidos e mal-amados.
Sim, parece definitivo. É vestindo-se que homens e mulheres se despem. Atraem-se mutuamente os pássaros por seus trinados. Os pirilampos por suas lanternas. Alguns animais por seus urros e berros. Outros por especiais cheiros. O que não procede entre homens e mulheres. Dos múltiplos fatores de atração entre si, o traje está entre os principais.
Todavia, o traje entre os homens faz muito mais que atrair. Traça status. Demarca tribos. Etiqueta estados. Pronuncia ideologias. Delimita categorias. Há o terno, terno traje dos que se fazem eternos nos comandos de poder. Indumentária magna a denotar os eternos comanditários de sua sociedade-brasil. Tanto que, ao ter alçado a escala, a farda deu lugar ao terno.
A indumentária de gala a que se submetem homens e mulheres, porque assim prescreve o figurino para aquela figuração. Os trajes peculiares com os quais cada nação se estabelece; com os quais cada região se singulariza. Os trajes irreverentes e moleques permanentemente mutáveis da eterna juventude avessa aos ternos, às togas, aos tules e longos. Vão com seus percings, suas tatuagens, suas exóticas estampas.
E há os trajes dos incuravelmente trágicos; os trajes dos definitivamente sádicos; os trajes dos irremediavelmente frágeis; os trajes que põem a todos ávidos; os trajes que se tornaram por todo o sempre hábitos. E os trajes que ostensiva e propositadamente são ultrajes.