Psicose

Data 05/out/2005

Viu-ouviu-viu o estampido. Sentia a presumível sensação de um atingido. Não havia dor nenhuma. Mas se sabia envolvido. O clarão cegando-o simultaneamente de tudo. O corpo leve, solto, desgovernado como o de um astronauta em inspeção interna. Assustou-se muito. E em seus rodopios via plastas avermelhadas pelo chão, nas vitrines, em finas roupas expostas, em flores de canteiros ornamentais, em gente estirada, em gente em movimento. Pessoas correndo, se contorcendo com expressões de dor e sujas de sangue. Ouvia indecifráveis vozes de pavor, talvez; de agonia, talvez. Depois, ainda flutuando, lenta e levemente, como uma pena de pássaro pego por um tiro mortal, ou uma folha seca desprendida, veio vindo ao chão.
Pousado. Sentiu insuportável tontura. Arrebatava-o, autoritariamente, por mais que se opusesse, por mais que se esforçasse por impedir, um sono poderoso, inafastável.
Agora, em seu sonho, conduzia-o uma daquelas macas motorizadas para retirar jogador de futebol contundido. Embora a maca-móvel trafegasse sobre o gramado do campo, ia estrepitosa, sacolejando-o excessivamente, parecia mais contundi-lo ainda.
Então pôde ver que seu corpo seminu, torso descoberto, pés descalços, calças rotas, rasgadas, arregaçadas, ia manchado, escoriado de sangue vivo, lhe escorrendo não sabia exatamente de onde.
Mas logo percebeu que se tratava de intensa chuva. Que lhe batia nos cabelos, no rosto, enfim em todas as partes frontais do corpo. Chuva vermelha. Sem, todavia, conter gosto de sangue. Continha gosto agradável ao seu paladar. Que sorvia discretamente com prazer. Gosto de mel de jataí que sua mãe, a duras penas, comprava para curar-lhe uma maligna bronquite danosa à saúde de seu primogênito menino. Porém, logo tornou-se sabor de framboesa com que hoje mistura em seu leite do café da manhã.
O leito em que fora deposto, de dureza rude, lembrava-lhe a altiva rocha rente ao mar, onde mantivera, intensamente, uma relação de amor, sob pálido luar, prazerosamente, com uma formosa e gostosamente sacana garota de programa. E, súbito, foi tomado de uma comoção orgásmica. E de seu sexo semi-erecto jorrava sêmen em profusão. Apavorado, envergonhado, procurava, inutilmente, esconder-se de muitos olhos que, agora, de repente e surpreendentemente o fitavam e da garota que, nua, rolava pela pedra de tanto rir daquilo tudo.
E, enquanto assim procedia, a mulher apontava-lhe, com os indicadores de cada mão, para o céu. De onde vertiginosamente caía sobre ele uma enorme bola incandescente. Apavorado, não conseguia mover-se do lugar. Tampouco gritar, embora desse tudo de si.
Aí acordou com a mão da mãe sobre sua cabeça e um complacente sorriso e olhar. Sentidos recobrados, deu-se conta de que adormecera, enquanto lia, no jornal, a notícia sobre o mais recente caso de homens-bomba vitimando gente inocente na Indonésia.

 

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