Data 12/jan/2006 |
O inerme corpo dela, de tudo já distante. Agora todo de si mesma. Imóvel, naquele estado de coisa, de rocha, de concreto, de terra. Foi nesse instante, ante a consumação do impensável, que me dei conta da precisa grandeza de sua estada. Que sempre soubera do quanto ela fazia pelos seus, pelos outros, certíssimo era. Assim, precisamente, até então não sabia, como agora soubera, o quanto também para mim, por mim mais talvez fizera.
Moderna mulher. Pragmática, intuitiva e vocacionada educadora. E comprometida profissional da Educação. Assim fora numa atuação de inata servidora sem nenhum traço de servidão. E também como os tecidos, sabiamente bordava essa tessitura mais complexa que entretém vidas. E nesta, como naqueles, avultava a bordadeira nada limítrofe, que sabia ir além de um ponto fixo, agindo com versatilidade e desprendimento.
Sob seus cuidados, porque não os dispensava, vários e distintos estados. O de senhora dona de casa, apascentando marido e filhos. O dos correlatos familiares. Todos com determinação e suspicácia.
Performance capaz de adequar-se. Se amava as festas, onde conjugadamente versam o espontaneísmo, a polidez, a discrição, o expansionismo, tanto mais devotava-se ao fazer. As várias atuações de que decorria a construção do benefício. Tanto mais ao outro, que, especificamente na sua área de atuação, são os outros. Aos sujeitos em crescimento, a cuja formação cidadã dedicava o seu melhor.
Há homens e mulheres aos quais a inércia, mais que inimiga do corpo, o é do espírito. A imobilidade, quando lhes parece estar indo além do necessário repouso, impacienta-os, incomoda-os. São talvez acometidos de um indefinível sentimento de culpa. Como se aquilo esteja já caracterizando um estado que, verdadeiramente, abominam: a preguiça.
Seguramente, ela compunha o quadro de mulheres dessas. Nas quais ainda perdura estável o gene daquelas que estão para laborar, no sentido estrito que o étimo a este verbete confere. Parece carregarem atavicamente em sua estrutura psicogenética a conformação sociocultural de destinadas à condição precípua de servir. Seja à extraordinária capacidade de agirem como matriarcais donas de seu lar. Seja como inigualáveis matriarcas requisitadas pelos ramos familiares, que a elas recorrem como o mais dotado recurso humano para a resolução das constantes questões e conflitos.
Seguramente, ela compunha o quadro de mulheres dessas. Servir plenamente. Em quaisquer circunstâncias. Prontas a se dedicarem pelo outro; pelos outros. Dedicadas a vida toda a essa causa: os outros, os quais, quaisquer, vêem como seus.
E assim o são admiráveis mulheres modernas. De suas antepassadas decerto são profundamente admiradoras. Decerto têm-nas como mulheres sem as quais não haveria o hoje. Decerto reverenciam-nas como a matriz, a fonte da vida dada às vidas outras, suas próximas e semelhantes. Decerto, por isso, as amam incondicionalmente.
Todavia, conquanto assim sejam, já não poderiam mais a elas se igualarem, nem serem iguais a elas. E isso, sobretudo, para continuarem a laboração pela própria causa delas: a vida pela vida dos outros, seu próximo, seu semelhante.
Agora, para que essa mesma causa se preservasse, já não poderiam continuar pelas mesmas vias. Daí que, distintamente daquelas, refutaram, com iguais labutas, sem nunca deixarem de servir, a submissão. Sem nunca deixarem de ser muitas, sendo uma, rechaçaram a subserviência. Servidoras, sim, porém não mais serviçais. Servir, sim, porém não mais servis. Ser para os outros, sim, porém sem servidão. Verdadeiramente, senhoras perante senhores. Donas perante donos. Profissionais perante profissionais. Não fêmeas perante machos, mas, sim, verdadeiramente, mulheres perante homens.
Seguramente, ela compunha o quadro de mulheres dessas. Seu inesperado, abrupto, inimaginável desaparecimento, porque precocíssimo, causou profundo abalo em todos: os outros, esses que fomos sempre a sua causa.