Data 15/Abr/2005 |
Impossível não ouvir o seu relincho. Um relógio na emissão de seus zurros. Ali, em plena cidade, diuturnamente, nos mesmos períodos de tempo, um jumento zurra para estranheza, surpresa, saudosismo de alguns citadinos, como ele, daqueles próximos bairros ao ponto (que desconhecia completamente) em que aquele jegue residia.
O jumento que não é cavalo, mas que dele muito tem e dele muito se afasta. O relincho de cavalo qualquer é naturalmente belo. Seja qual relincho for – por amor, por rancor, por temor, por destemor.
Um cavalo ou égua baia, alazã, soberbos no meio do pasto. Pescoço altivo, donde soltas crinas crespas evolam-se ao vento. Rabo arqueado no qual também crinas iguais balouçam. E seus soberbos relinchos. A campear a cria perdida. A implorar a fêmea preferida. A enxotar inimigos do seus espaço. A impacientar-se ante anúncios de fortes temporais.
Cavalo ou égua equipados a rigor. Pêlo em brilho de alimentação apropriada e escovação periódica. Traia das mais agradavelmente adequadas. Freio leve em aço. Tal a montaria bonita em seu elegante compasso de marcha. Marcha a que nenhuma se compara.
Sim, o jumento. Que poucas vezes vira. Por certo porque em seu mundo valia o cavalo. Era ali, fora aos poucos percebendo, de nenhuma serventia aquele burrinho pardacento; imprópria montaria para as lides daquelas paragens. Por que um que outro criador possuía também um jumento? Soubera que por ali existia com a privilegiada (decerto ele mesmo não se dava conta disso) condição de ser reprodutor.
Um burro, uma mula, de pai ou mãe jumentos destes não herdam o porte. Justamente o que a seus proprietários apraz. Mas decerto trazem dele um fôlego e força tamanhos que noutros eqüídeos não são. E de sua mães égua, ou de seu pai cavalo trazem também o porte.
O espectro de uma égua alazã, tordilha, negra, mansa, a passear, enquanto pasta; enquanto espia o vago, o horizonte. Crinas soltas. Ancas magníficas esplendentes numa aurora; esfusiantes num pôr-de-sol; ardorosas numa noite estelar de lua plena. Uma égua de cujo parto pode um burro, uma mula.
Não traz o burro do cavalo a garbosa elegância esfíngica. Não traz a marcha eclética e marcial de patas, pernas e coxas desenhando em contínuo, no espaço, imagens de engrenagens cuja mobilidade seduz, atrai, prende. Não traz o burro no seu galope as convexas-côncavas curvaturas magistrais que se vão sucedendo no ar de vivo pasto, transfigurando-se num espectro multicor. Tampouco uma mula traz de uma égua estas semelhantes proezas.
Não. Um burro, uma mula são turrões. Vão devagar, são de vagar. São duros de andar. São de andar duro. Trotam. Rude postura de cabeça baixa, de silhuetas retilíneas. Cores opacas e esmaecidas.
Todavia, o porte mediano, as canelas finas, a paciente cavalgadura, atestam homens que com gado, cavalo, égua, burro, mula tanto conviveram e convivem, são caracteres de animais incomparáveis em resistência e sabedoria. Um burro sabe a hora da travessia. Uma mula sabe ser das mais finas e seguras montarias. O magistral conto “O burrinho pedrês” de João Guimarães Rosa; a antológica canção caipira “Moda da mula preta” de Torres e Florêncio são dois comprovantes irrefutáveis.
Vêm do jumento decerto esses caracteres manifestos pelos filhos, que se prestaram a servir com presteza e vantagens, em alguns casos, mais e melhor do que quaisquer outras montarias.
Do Evangelho se depreende que o jumento por duas vezes teve a honrosa façanha de servir a Jesus Cristo. Uma levando, no lombo, Maria com ele a fugirem dos herodes. Outra, também em seu lombo, levando Jesus que em Jerusalém entrava.
No Nordeste é que, mais que noutro lugar qualquer, se constata essa sabedoria e resistência jegue. Nordestino matuto que se preze, ao lado de uma cabra e um bode tem o seu jumento que a tudo pode. Tanto é certo que Luiz Gonzaga, em parceria com José Clementino, compôs, cantou e incluiu em sua antologia principal – “Luiz Gonzaga, 50 anos de chão” a canção que lhe fizeram em homenagem: “Apologia ao jumento (O jumento é nosso irmão)”.