Quinto: não matar

Data 21/jun/2005

Aprendera, sobretudo com a vida, que o ângulo pelo qual se olha é que configura uma realidade. Logo, não há a realidade única. A realidade não é a mesma.
Viu, tem visto e decerto verá, enquanto seus olhos não estiverem mortos, que o belo é também feio; que o trágico contém lirismos; que o cômico contém tragicidades; que a morte também não é o fim da vida; que o triste contém beleza; que o sagrado também é o banal; que o profano é o cotidiano; que Deus é também o problema; que o bandido também é mocinho; que a mentira contém suas verdades; que o destino, construído desde menino, sempre se depara com certos desatinos; que muita velhice vive crivada de meninice.
Então, quanta coisa que, dada por inválida, tem, súbito, alguma validade. As insignificâncias inobservadas de repente surpreendendo. Haja vista a vida. A natureza instituiu-a. Fê-la ser. O instituto da vida vigorando em sua miríade de seres. Os sabidos e conhecidos. Os dessabidos infindos. Súbito se insurgem, muita vez causando espanto. O que não se conceberia poder haver.
Seres vivos. Inconcebíveis. Todos com seu destino, defendendo a vida, com modo e hábito de agir com o instinto que a natureza os dotou. Todos à caça dura do que lhes garantir a sobrevivência. Decerto não sabem por que, pra quê. Sobreviver é preciso. Que a vida lateja na sua exigência de permanecer criando necessidades físicas, necessidades de proteção, que a lei da sobrevivência não prescinde de que os seres sejam predadores entre si. As ervas, vidas, são pastos dos herbívoros. As carnes, vidas, são pastos dos carnívoros. Assim se consuma a sina de que é preciso morrer para que haja a vida. Então, a vida, que se quer eterna, é um extermínio de si mesma.
Matar é um ato próprio do que é vivo. O vivo vive de matar. Os microorganismos invisíveis, feitos bactérias, feitos vírus sempre perseguidos, pois vivem se constituindo em sérios perigos a seus hospedeiros. Os insetos – os pernilongos, os mosquitos, as pulgas – são incontinentemente repelidos, mortos, pois que tidos como perigo à vista. Mas também a aranha, a barata.
E era justamente uma barata que tinha ele, naquele instante, diante de si. Ela também, por certo, percebera que ele a percebera e a tinha com aguda acuidade toda em suas retinas.
Tratava-se, certamente de um homem. Fosse uma mulher teria gritado histericamente e batido em retirada propalando que havia lá uma barata. Homens, não. Geralmente precipitam-se sobre elas para pisoteá-las. Esmagá-las. Estava, pois, em altíssimo risco de vida. Ambos estáticos. Pressentia que o golpe dele estava na iminência de ser disparado. Não compreendia por que ele demorava tanto daquele jeito. Mas alentava-se por isso. Ia ganhando tempo, para sentir a direção pela qual conseguiria escapar com maiores chances de que ele pudesse não alcançá-la. Ele continuava paralisado. O que a afligia muito. Deveria ter-se preparado já suficientemente para apanhá-la por qualquer lado que fugisse. Errara em lhe permitir tanto tempo assim. Homens são mais astutos que baratas. Em pânico, decidiu-se por fugir pela porta quintal afora. Sua estratégia era rapidamente ganhar o gramado pelo qual se imiscuiria, fazendo-o perdê-la de vista.
Melhor assim. Nada de correr atrás dela. Que vivesse ainda mais um pouco. Quem sabe indo de seu quintal à rua. Até que uma galinha ou pássaro famintos a encontrassem.
Sentia-se aliviado. Pois, se tivesse fugido para algum outro local de dentro de casa, estaria obrigado a caçá-la e exterminá-la.

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