Desengano
|
Data 04/out/2004 |
Embora as exigências fossem, no texto, muito peremptórias e claras, relutava. Não atinava com aquilo. Sim, os pormenores e detalhes informativos nenhuma margem de dúvida deixavam.
Achava-se em estado de recusa emocional. Raiva. Muita raiva, senão ódio. A bem dizer, não seria a primeira ocasião em que se vira em condição de injustiçado. Todavia, nenhuma tão forte a ponto de fazê-lo indignado assim.
Haviam-lhe dado um certo prazo. Após o que tudo o que viesse a acontecer seria atribuído a uma sua intransigência. Mais dizia o texto: que não arredariam um milímetro das concessões feitas, das quais, aliás, já se arrependiam, em virtude de ele estar usando o prazo estabelecido, o que consideravam um espicaçamento de sua paciência. Isso lhe cuspiam em um segundo recado expresso em rancoroso texto. Rancoroso, como acentuadamente ameaçador.
Ficara apreensivo. Passaram a pulular em sua cabeça acontecimentos dados pela vigilante e ubíqua mídia deflagrados mundo afora. Os homens do tempo de seu avô diriam por esse mundão. Os do tempo de seu pai diriam por esse mundo de meu Deus. Os assassinatos, por degolação, de prisioneiros mostrados com seqüências de atos pela imprensa. Mais que amedrontá-lo, punham-no numa consternação com conseqüente imobilidade. Imobilidade mental inclusive. Prostração indescritível, como se o assassinado fosse um seu querido ente.
Entendia, agora, melhor por que, conquanto não fosse o mesmo caso, os familiares ou o negociador de seqüestrados recrudescem no sigilo. Tinha calafrios. Por mais que dissipasse os maus pensamentos, não se concentrava nos afazeres inadiáveis. Logo, os desempenhava muito mal. O que se tornava grave, pois que deles fluindo com tranqüilidade dependiam os demais.
Por algum tempo cogitou muito concentradamente quanto à melhor medida a tomar. Tratava-se de uma situação de fato peculiar. E por isso mais melindrosa, muito mais exigente ao que fazer para a solução desejável. Não havia soma nenhuma de dinheiro em jogo; não havia bens, objetos preciosos nenhuns em jogo. Todavia o de que mantinham posse (os sórdidos, os bandidos) considerava tanto quanto grave. Dá-los a público, conforme rezavam as terríveis missivas enviadas pelos facínoras, talvez tivesse efeitos iguais e mesmo mais perdulários que os dos casos conhecidos.
A mídia abriria ofertas tentadoras. Seria, como dizem, o mapa da mina. Fariam, se jornal, tiragens triplicadas; difundiriam, se televisão, nos horários nobres. A internet. Um caos!.
Ninguém merecia aquilo. Era um inaceitável paradoxo. O custo, o preço, a conseqüência de toda uma vida dedicada à construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária, solidária, democrática, mais distributiva dos bens gerais.
Não se julgava tão perdedor, quanto estas causas. Nelas, qualquer acidente de percurso, como poderia vir a ser aquele, causa danos quase irreparáveis, irrecuperáveis. Todavia os detratores do bem estar social não lhe exigiam resgate. Impunham permuta. E destrutivo seria tanto o que detinham quanto o que solicitavam como substitutivo.
Muito pior: e se não trocassem? Estariam de posse de todo um grande instrumento que, isolado, nada significaria, como nada havia até então significado. Mas difundido com a distorção pretendida causaria danos para cuja reparação toda luta acaba sendo vã.
Agora, estava ali. Onde, quando e como exigiram. Aguardava de posse do substitutivo possível. Sentia-se pronto. Em condições para que o desfecho não se desse exatamente como eles queriam.