O que vai deixando de ser (e não podia)

Data 16/nov/2005

Um silêncio profundo dentro de sua intensa luminosidade. De um sol cegante de tanta ardência de luz. Sol tropicalíssimo com seu metal brasante pondo pavor em quem pensasse como seria o inferno.
As manhãs compunham-se tácitas sob a fornalha solar que, há pouco ateada pela aurora madrugadora, irrompia o dia, cada vez mais pleno até o máximo de seu fogo cáustico: o sol a pino.
Tácitas manhãs. Tecidas pelas leves, sutis e apascentadoras mãos maiúsculas da tecelã mãe natureza. Com suas muitas agulhas costurando a manhã. Artesã maestrina compondo com cores breves, efêmeras, indo do róseo-aurora ao ardente ouro da tarde plenificada. Para depois, então, pôr fim ao dia em tons próximos aos do início. Mas um róseo mais cóbreo-roxo.
As múltiplas agulhas gorjeantes tecendo o manto-canto, dando ao agudo silêncio seu mais depurado revestimento. Toadas antitéticas – canarinas, pardocas, pombalinas, rolinhas, siriris, bem-te-vis, sanhaços. À parte os colibris e as borboletas dando em cima das flores que desabrocham na ânsia de saciar sua sede de luz.
A agulha-vento com seus vários operários que só em casos muito graves se revoltam e, enfurecidos, tornam-se tempestades. A brisa. Ah! a brisa com seus sutis toques suaves passeando os corpos, penetrando os poros. Brisa mansa que beija e balança as coisas, os trastes, as folhagens, os miasmas, os pauis, os belos louros, negros e soltos cabelos.
A aragem. Ah! a aragem que torna ainda mais refinada a si a delicada leveza de servir-se de refrigério. Com sua indelével e perspicaz passagem mal fere a pele dos lagos, dos rios, dos mares. Nos homens, nos pássaros, nos bichos se limita, pudicícia, a percorrer tão-somente pelas penugens. Sopra-lhes o bom e inebriante frescor imperceptivelmente. Assim o faz em rítmica cadência alternativa com sua irmã brisa. Esta vem com seu bom e leve, mas acentuado sopro de boca cheia. Esvaziado, se vai, decerto, tomar fôlego. Então, em socorro, a arrefecer a ausência dela, entra a aragem com seus toques mágicos. Refeita a irmã, ela se retira agraciada, nada se importando com ser uma adjuvante. Sabe, por constatar nas faces, dos regozijos por tê-la.
É sabido também que sói acontecer, quando em vez, há de ver porque as irmãs hibernam-se em suas merecidas férias, vir ao trabalho a indolente viração. Há quem afirma que a viração é a plena maturidade a que chega a brisa. E que nesta fase age por si mesma. Em contínua durabilidade. Vara a manhã, a tarde e sustenta o bem estar da noite. Mas aí ganha uma camaradagem. Sucede-a, já quando a noite é andada, o arilho. Trata-se de um vento senhor. Senhor meio áspero, com alguns caracteres casmurros, com pitadas de rabugices. Por isso, quase sempre torna as altas noites frias.
A tarde o que faz é curtir a indolência advinda da dura incidência solar que a tudo fustiga com sua fornalha em pleno vapor. Põe tudo em modorra. Os bichos arfam ou adormecem sob a mais fresca sombra que as altivas árvores garantem (Mas elas estão progressivamente se acabando, que o homem, conquanto as saiba imprescindíveis, ainda assim as corta; que o vício das drogas acúmulo, abastança, poder não o deixa agir com os neurônios.) Os homens, nos seus afazeres, vão mais devagar. Assim, até a tardinha cair. É agora o sol quem vai modorrento. O crepúsculo acalanta-o de forma irresistível. Hefaísto cai em profundo e inabalável sono.
Eis então que a noite vem. Ficam ainda acordados, ávidos por cortejá-la, mal adormece o sol, os homens. Que os pássaros e os bichos, fidelíssimos ao dia também se recolhem.
Ah! a noite com sua corte. Seu manto negro acoberta infindáveis e excitantes segredos. A noite com seus sortilégios. A noite é sempre uma moça encatadora, cuja turba de convivas são sedutoras ninfas estelares. Todas sensualíssimas. Enfeitadas com seus diáfanos diamantes. A liderá-las, a filha mais prendada que a noite não entrega a ninguém. Dizem que, se o fizer, ficará completamente cega. E desse modo não mais conseguirá escapar, a cada fim de noite, da tara voluptuosa que por ela tem o sol.
E prescrito está pelos deuses que, se o sol a possuir, será o fim. E os tempos não mais terão noites E, acabada a noite, perecerão todos os que precisam adormecer para a vida. Dentre estes, os homens. Que perdidamente amam a noite, mas que também, mal rompe a manhã, acordam para se entregarem à devastação do planeta onde a noite se esconde.

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