Aquela voz tomando conta dos seus ouvidos. Aquela voz tomando conta dos seus sentidos. Aquela voz rastreando os seus olvidos. Aquela voz vibrando o profundo medo de seus tímpanos. Aquela voz desencavando do fundo sótão de seus segredos. Aquela voz bulindo com seu sossego. Aquela voz que adeja, feito aleluia em lâmpada, seu pensamento. Troava. Um buliçoso movimento de seus anseios; de seus desejos; de seus crônicos receios. Nada podia contra aquela voz. Que imperava impávida. Com seu vezo inconfundível. Propalava-se com toda a fibra de profundo rancor. Cáustica rispidez vociferando seu ácido vitupério.
De certo a querer, com seu tom, com seu som implodir quaisquer resquícios de índices dela promanantes. Arrasar seu sempre possível pousar em algum acolhedor lugar. Uma voz a perseguir com ódio tenaz sua estada em vida sob a mais discreta e inominável favela ou ruela, ou gueto, ou cafundó de mato ermo.
Voz que o queria como alma viva. Como se somente a ela a vida fosse desmerecida. E que devesse ser banida a quem quer que fosse, que, como ele, a desmerecessse, a trouxesse ao centro solar do questionável e a pusesse em dúvida. Que contra ela dissesse um talvez, um quem sabe não seja exatamente assim.
A sobeja voz. Aquela que se sabe, que se soube sempre capaz de; (incapaz de). De quem sempre se ouve, se ouviu sem igual. Modéstia à parte imortal. Pedestal às quantas gerações por formar-se. Para o que era insubstituível ouvir seu timbre, captar sua inigualável entoação. Aquela voz para assombro e medo dos que, menos que ele fizera, ousassem pôr em dúvida sua vibrante fibra. Uma cavilação tida e mantida.
Não se podia lhe negar certos indiscutíveis predicativos (certos de que deveras não admitisse). Posto que, se coragem houvesse, como ousadamente medroso fizera, não se podia eternamente aceitá-la inquestionavelmente unânime, infalível.
Outras vozes havia. Que, entretanto, já na apresentação carregavam o atributo de inferiores, menores, à vista da magnitude reiterada dela. E sua desgraça maior fora indagar por que uma voz deveria ser considerada em comparação com outra voz. Por que uma voz, essa voz, esta voz, tal voz, acolá voz não poderiam ser consideradas em si mesmas. Tidas e havidas a partir de seus caracteres, os quais as tornavam peculiares e diferentes entre si. E que, evidentemente, não fossem dadas como de protótipo, de estereótipo, porque já a voz de deus diz que há os que gostam dos olhos e os que gostam da ramela.
Contornar a ira da voz poderosa ferida em seu orgulho (estúpido) lhe era posto como uma obrigação imediata. Encontrasse logo a forma, sem sofisma, convincente. Aplacar sua apoplexia. Ambígua voz a espraiar estados gerais. Sua própria volubilidade caprichosa. Indo volatilmente da volúpia à danação. Do uivo à mudez. Do gozo à dor. Da perplexidade à indiferença. Da abulia à curiosidade exacerbada. Das carícias inigualáveis às torpes brutezas. Das asperezas espúrias às mais afáveis amabilidades.
Seus vitupérios implacáveis eram circunstanciais, ocasionais. Por mais que se não creia, e não se acreditasse, dava-se em certas outras ocasiões a relatos inebriantes. Por perplexos os que quase há pouco presenciaram rudezas pudessem ficar. Relatos radiantes. Pelos quais perfilhava toda sorte de ternuras, belezas, amores, paixões e encantamentos.
Voz incapaz de se dar ao autocontrole e entregar-se a um único e resumido caminho. Que fosse o escolhido como próprio e certo, extraído de longa e complexa reflexão.
Não. Movia-a a cor da vida. Tórrida ou terna; ou terna e tórrida, conforme se lhe mostrasse o instante. Se precaução houvesse, e sutilmente se percebia que sim, fazia-se instantânea e concomitante à ação em encadeamento. E raro era o arrepender-se. Que, não obstante, acontecia.
Eis que o vulcão lavracento, em instantes, decorrido apenas o súbito e intenso silêncio demarcador fugaz da transformação, torna-se voz de brisa em milharal; voz de brisa em pinhais; voz de brisa em cálidas ondas de mar.
Aquela voz. Uma voz feita com a cor da vida. Uma voz curtida pela complexa dimensão humana. Uma voz devoradora do que compunha seu mundo. Uma voz feita de dor, rancor e amor. Voz prezada, prezante, praguejante, prendada, passada; — presente.
(In:. Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta, de João Cabral de Melo Neto, 4 ª ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967, p. 106-116).
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