Homessa

Data 05/março/2004

     A severidade dele. Homem cuja fisionomia estampava um fleumático prestes a expoldir-se em vitupérios crivados de lancinantes palavras cutelares, palavras demolidoras. Os olhos esbugalhando sua indignação incontida e rebentada. O nariz grosso e apimentado, de certo irritadiço com o responsável por tamanha provocação a seu dono. Este o senhor Antônio que lhe diziam ser e que nunca vira.
O que sempre vira foi um fleumático, sim, porém amável e eclético dirigente escolar daquele educandário. Afamado homem bravo, conforme a versão dominante na escola. Talvez fosse uma conduta de forma programada, previamente pensada por Antônio, para, na presença dele, não se permitir ser aquele afamado vulcão. Fato logo notado e resultante de longas conversas na escola.
Mas o tempo de convivência demonstrou não ser verdadeiramente, por uma razão pessoal qualquer, lá dele, uma posição, se não concreta, sem simulações e disfarces. Seu procedimento em relação a ele era de fato espontâneo. Conversa solta. Expressões brincalhonas e ironias. Muitos de seus comentários e observações argutas quase sempre se faziam em tom irônico ou zombeteiro e acompanhado de estridulante gargalhada provinda de uma face enrubescida com o que dissera.
Antônio apreciava com ele travar, de forma acalorada, breves discussões a respeito de diversos temas, desde educação a política, sua paixão. Discussões que o punham em estado vultuoso. No extremo de sua veemência, parecia estar sendo acometido de uma apoplexia. Todavia, assim, felizmente, não era. Na mesma velocidade com que abeirava aquele estado, tornava ao normal. E o que parecia uma fúria devastadora, reequilibrava-se. A calmaria de um homem soturno ouvinte paciencioso, semblante indevassável a perscrutar confrontadamente o interlocutor. Talvez a isso se devesse outra história a seu respeito, conforme a qual as pessoas em sua presença, ao expor-lhe algo, ficavam aflitas, apreensivas, temerosas, desconcertadas, ante aquele olhar azul fixo, penetrante, enigmático em completo emudecimento, ouvindo, ouvindo. O mediano corpo robusto, propendendo a gordo, parecia ainda mais crescer. Depois pausada e laconicamente mais sentenciava que replicava.
Embora não quisesse descrer daquela corrente história e porque fosse conhecedor da outra face de Antônio, mais o compreendia. Tratava-se de uma denunciada e crônica misantropia. Antônio muito pouco entregava de si e a muito menos pessoas ainda. Certamente devia ter controladíssimo pavor do público, ao qual jamais permitira bisbilhotar o seu íntimo. Com ele abria-se. Tratava com rigidez e radical regramento o único filho e a mulher. (Outra história: castigava perversamente a ambos.)
Antônio era comunista radical. Mais do que isso, stalinista devoto. Eis quando mais assustava a possibilidade da concreção da apoplexia. Abominava, numa loquaz oratória viperina, os fascistas e nazistas expoliadores do povo. Antônio dedicava-se à astronomia. Contava-lhe fatos e fatos. O cosmos, os astros, os eclipses, o misterioso e instigante universo o fascinavam.
Tivera com ele um singular convívio. Cria ter sido útil durante esse período à existência de Antônio, que singular e quase unicamente (somente outro amigo dispensava-lhe o mesmo tratamento) o chamava de Chico.
Depois ele se foi daquela escola. Rarearam seus contatos: encontros esporádicos, casuais.
Depois soube que Antônio havia se mudado para outra cidade, o que o fez olvidá-lo quase por completo.
Por fim, chegou-lhe a notícia ruim de que Antônio se suicidara com um tiro de revólver no peito. (Justamente ele que detestava Getúlio Vargas.)

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