O vinho do poder

A taça de vinho. A noite sendo tomada pelo frio. Fazia-se cada vez mais proeminente o inverno. O jornal aberto em cujas páginas políticas pululavam notícias, fatos, depoimentos. O país passando por novos percalços. Mais de vinte anos depois de restabelecimento da democracia liberal, ainda se conduzindo por terreno escorregadio, de planuras e buracos, de ladrilhos e lamas.
Inumeráveis e multifacetadas cenas de terror e dor passadas na construção de ansiadas liberdades democráticas. Que pareciam ainda longe do idealizado. Dessas muitas cenas, uma, agora, ali, evocara, cujas elucubrações políticas, partidárias e eleitorais vararam madrugada adentro sustentada por muitas garrafas de vinho.
Era um tempo em que reconstruções precisavam ser feitas. Cada qual fizesse a seu modo. Conforme suas possibilidades. Cada qual desse de si seu quinhão. A causa pedia um pouco de desprendimento. Valia o que fosse feito com entusiasmo, dedicação e responsabilidade. Tudo para que se pudesse reinaugurar, ou inaugurar um estado democrático estável.
A instabilidade de um país que nunca parecera ser efetivamente confiável a seus próprios herdeiros. Estes mesmos talvez se sentissem frágeis. Ainda no fosso da impotência. Nada consistente e verdadeiramente nacional, patriótico nele houvera se desenhado como o rumo, o caminho para seu lugar.
Até ali não chegara a terra de país arrasado, porque, de fato, incomensuráveis são os filões de sua riqueza. Por mais que o tenham espoliado; por mais que tenha sido submetido a terríveis sangrias; por mais que tenha visto devastarem sua mata, envenenarem seus rios, exterminarem seus pássaros e animais; por mais que tenha visto o seu céu de nuvens e azul sempre pinturescos e o puro frescor de seu ares irem degradando-se em cinzas e putrescências; e que por muitos mares bravios tenha sido atormentada esta Ilha de Vera Cruz, esta Terra de Santa Cruz pela nobreza assim denominada e que a singeleza do vulgo preferiu chamar de Brasil, em que pese terrivelmente isso tudo, não sucumbiu, não soterrou.
Todavia, também não se melindrou em disparar o alarme, em acender suas luzes vermelhas. Tais sinais, ainda que brisas boas tenham perpassado, ainda que tenham surgido frescas garoas, ainda que fértil chuva e sol fecundo não a tenham esquecido, tais sinais continuam alarmando, continuam acesos.
Era, então, também uma noite de inverno anunciado. Eles eram três homens cheios de esperança com suas utopias muito semelhantes e vivas. Advinham de empenhadas ações de combate durante todo o período daquela ardilosa e destrutiva ditadura de décadas. Haviam trilhado pelas mesmas veredas na conquista do estado de direito democrático. Foram assembleístas. Foram debatedores. Foram grevistas. Foram aprisionados. Foram radicais. Foram marxistas-leninistas. Foram guevaristas. Foram diretas-já. Foram tancredistas.
A hora era de começar, fazendo a lição de casa. Urgia, mais do que nunca, que ali no município deles fosse inaugurado o estado de direito. Combinaram encontro em que debateriam como fincar o pau da bandeira que iria tremular a altíssona convocação para a cívica instalação da democracia pelas eleições que se anunciavam.
Encontro marcado para certa hora já ida da noite, pois que até ali estaria ainda cada qual em seu trabalho. O bar, que os teve sempre por bem-vindos, tratou de acantoná-los em certo lugar reservado, onde planeariam sua grande tomada da Bastilha. Chegara a hora do basta aos modernos coronéis antiprogressistas. Sob o mando desses senhores a cidade era uma ilha de atrasos cujas circunvizinhas estavam a décadas de progresso. A grande maioria da sua população estava gritantemente empobrecida.
E o vinho predileto aplacava a sede de justiça e progresso daqueles três mosqueteiros que conspiravam contra os opressores de sua espoliada cidade. Complexas questões de luta eleitoral foram delineadas. Madrugada ida. Garrafas de vinho esvaziadas. E todo eficiente trabalho emperrado num ponto. Eram três partidos que depunham à mesa de negociação quase tudo. Menos a condição de ser a tal cabeça-de-chapa.
E partidos ficaram. Cada qual com sua cabeça-de-chapa, permitindo assim que a tal cabeça antiga se mantivesse devoradora voraz e intocável. Enquanto os três outros, embebedados de si mesmos pela transformação do poder, continuariam voltando para casa de vinho tinto entupidos.

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