Cabeça

Data 18/fev/2005

Quanto à irmã Dorothy Stang, de certo o mote que se lhe deu para sua morte a mão armada, para que finalmente cedesse à sede de crime e possessão, foi tornar cidadã (tristeza!) brasileira: coisa mais vã.
Pronto. Estava pronta para ser exportada para a pátria dos mortos. Que se dera para mulher-freira subversiva metida a pastorear gente contra agronegócios tão nobres, sob a bandeira de que os mesmos às suas exclusas ovelhas eram acres.
A petulante irmãzinha daqueles indigentes invasores de terras de ingentes apropriadores, senhores; a agente da Igreja esquerdista agitando a escória atrasada e ladra!
Pagou pelo pouco caso que sustentara, mesmo que a história amazônica recente lhe informasse o destino de sujeitos que se deram a tais propósitos.
Idos os momentos de cenas de ira e indignação; de lamentações induzidas por sentimentos de profunda dor e consternação de impotência; de acusação ao governo federal por omissão e descaso, tudo passaria. Os assassinos ficariam acobertados pela enorme e enigmática entranha da mata.
Bem sabia a agitadora. Até por isso convencera os amigos a firmar compromisso para o seu sepultamento (quando assassinada!) de seu corpo morto. Procedimento decorrido das veementes ameaças. Fatos repetitivos como a sucessividade entre o dia e a noite. Tantos que sem conta. Perdidos no esquecimento urdido pela exigência de constantes e múltiplas atividades pela sobrevivência que a vida impõe.
Sujeita feita de pura teimosia. Por que abdicar de sua faustosa vida norte-americana: primeiríssimo mundo rico e poderoso, para vir meter-se onde não fora chamada, onde não lhe dizia respeito? Lugar completamente avesso ao de sua origem. Isso de opção pelos pobres e oprimidos é coisa de estúpidos e anacrônicos bolchevistas não ainda emendados. Não obstante a completa ruína do socialismo marxista, como o fim da ex-união soviética; como o capitalismo já mandando na economia da China do ex-camarada Mao; como o muro de Berlim arrasado.
Ao sertão amazônico não cabe a gringo nenhum vir dar a seringueiros e castanheiros palpites e idéias infelizes de ocupação de terras que estão sob o domínio de gente de posses. Que, portanto, têm recursos e formas de bem explorá-las. O homem nativo daqui é bugre pronto apenas a trabalhar nos eitos.
Madre Maria? Stang! Desafiando a ira de brasileiros da gema amazônica! Pondo banca de questionadora destemida da vida alheia. Ora, estava pedindo pedestal! Uma glória como a daquele outro traste. Todavia, Chico Mendes, sim, criaria mesmo toda essa história viva em torno de si. Era homem dali. Sangue da mata amazônica. Sabia a palmo do espaço de que era filho. É certo que muito mais perigoso. Homem-líder daquele povo. Vivia como eles. Um pobre. Morando num quase-casebre. Era o que pregava. Perigosíssimo, pois! Matá-lo foi muito mais difícil. E não eram à toa os muitos medos que demoraram a façanha de mandá-lo ir defender seringueiros e castanheiros no inferno! Ninguém queria pôr o guizo em seu pescoço.
Mas quanto a essa aí… Estupidez tanto tempo. Tudo logo acabaria. Esses meninos de tiro-de-guerra do exército para aqui deslocados estão mesmo completamente deslocados. Bagres fora d’água. Não sabem nem mesmo de que se compõe a mata.
Aos teimosos o recado está dado. Aqui mandamos. Como no Rio manda o tráfico.

Adoção

Data 25/fev/2005

     Quando menos se dava conta, ela se deixava ver. Aparecia a distância. Mas fixa e francamente interessada nele. Não perdia uma estada sequer. Era assim. Quando ele saía-se de si e buscava o entorno, se lembrava de ver em que canto ela estava. Nalgum. Tinha certeza. Menos por presunção. De fato, porque ela não perdia nenhuma vez. Discretíssima num seu canto escolhido a distância. Olhos pregados nele.
Aquilo não o incomodava. Envaidecia-o muito menos. De algum modo, intrigava-o. Postada a certa distância e semi-exposta, não impedia, contudo, de que percebesse tratar-se de uma garota. Razão suficiente para que descartasse qualquer interesse de natureza afetiva-sensual.
E a menina não o perdia. Todas as manhãs de sábado. Imediatamente lembrava-se dela ao chegar. Entretanto, não a via. Perscrutava. Nada. Ia preparar-se. Quando a esquecia. Vestia-se devidamente. Então, punha-se a alongar-se. Enquanto assim, sabia que de súbito semi-apareceria nalgum ponto.
E desse jeito sendo, um dia, terminadas as baterias de alongamento, antes de entregar-se à piscina, acenou-lhe duas, três vezes. Ela não correspondeu. Terminada a natação, não a vira. Sábados sucessivos, limitou-se ao habitual. Certa feita, tornou a acenar. Uma, três. Aí ela correspondeu. Um aceno acanhado e um esboçado sorriso.
Foi por aí, feito um índio, um bicho arredio, pacientemente concedendo confiança. E vindo para perto. Aos poucos. Encurtando distância de aceno a aceno. De sorriso a sorriso. O máximo de concessão fora passar a sentar-se em um banco sob uma árvore muito próximos da piscina.
Agora, ela já lá estava, quando ele chegava. Ao ir-se, lá permanecia imóvel. Uma estátua feita. Mutuamente acenavam-se, sorriam-se. Ele paramentado, alongava-se e antes de atirar-se à água, trocava aceno e sorriso. Natação acabada, uma hora depois, alongamento, sorrisos e acenos de despedida.
Num certo sábado quebrou essa rotina. Depois de alongar-se, foi até ela. Que, surpreendida, subitamente empalideceu, agitou-se, fixou o solo, recusando-se a encará-lo. Ele estendeu-lhe a mão sem obter correspondência. Disse seu nome e não obteve o dela fixa em sua mudez. Disse-lhe tchau e foi nadar. Ao sair, não a viu. Temeu espantar a menina.
Todavia, sábado seguinte, lá estava. Mal acabara de alongar-se, ela levantou-se do banco. Tropeçou alguns passos em sua direção. Parou, ficou fixada nele. Instantes de hesitações. Foi a ela, estendeu-lhe a mão. Ela aceitou. Cumprimentou-a com beijinho, beijinho. Sorriram. Ela, enrubescida. Ele insistiu em lhe saber o nome. Insistiu. Então, em fim, uma voz engrolada soou mal pronunciando seu nome. Em seguida tornou ao banco num andar desengonçado de quem parece se equilibrar com dificuldade.
Então ele conheceu tratar-se de uma garota com deficiências. Foi a ela. Sentou-se. Insistiu em restabelecer a conversação. Ela era filha da zeladora do clube. Órfã de pai. Ia de casa para a escola. Desta para casa. Um perua prestava-lhe esse serviço. Queria ser médica. Embora não confessasse, tinha vergonha de sua condição. Vivia reclusa. Um dia de suas sorrateiras andanças, viu-o preparando-se. Os alongamentos. Os ajustes na toca e nos óculos. As nadadeiras (de um azul muito bonito!). Depois, a sua natação. Achava lindo aquilo tudo! Daí ficar pelos cantos expiando-o.
Convenceu-a a entrar na piscina. Ele a ajudaria a aprender. Ela ficou entre temerosa e eufórica. Falaria com a mãe. No sábado seguinte, já pronta e a mãe o esperavam. Passou a ser assim A felicidade extravasava pelo semblante e o corpo todo de Olga. Ele, agora, vez em quando, enquanto ela esbatia-se toda em sua alegria n’água, postava-se numa das bordas da piscina e ficava pensando na filha que não tivera e que podia ter sido.

Uma cidadezinha qualquer

Data 11/fev/2005

     Uma cidadezinha. Todavia muito mais que uma cidadezinha qualquer. Havia, sim, bananeiras, laranjeiras, pomares, cachorros e burros que, de vagar, devagar iam, vinham. Havia, entanto, muito mais. De tanto não ter nada, tinha muito mais. Cidade mesmo, não quase.
Tudo à base de postos. Um posto da prefeitura municipal que ficava noutra cidade. Aliás, ficava na cidade. Um posto policial, que a delegacia de polícia também. Um vereador sem câmara, que era daquela cidade. Um posto telefônico em que uma telefonista executava as ligações e as recebia. Um posto de correio sem telégrafos. As correspondências –as cartas –, ainda que demoradas, aconteciam.
Uma igreja católica apostólica romana, cujo padre daquela cidade aparecia, algumas vezes, para os serviços religiosos. Porém, uma protestante atuava com desenvoltura (e os pastor residia ali)
O índice de que era um povoado do estado paulista: uma escola primária, e uma escola secundária de ensino ginasial e colegial. Todos funcionários do governo do Estado. A cidadezinha os privilegiava. Eram as únicas remunerações estáveis e constantes. Crédito no comércio: algumas vendas, um mercado, um açougue de carne de matadouro, alguns botecos, algumas lojas de bijuterias e tecidos; os solteiros, bons partidos, cobiçados e disputados.
Eram, pois, os professores os sábios do lugar. Ninguém se atrevia publicamente defender uma posição, senão citando nominalmente um deles. Eles, que não desdiziam, bem sabiam do precário saber que exerciam.
Por circunstância, talvez, pelo precário de ser, pela inextrincável condição do simples, ali, o ensino, se fizera anos, anos antes como um sistema, de fato, interativo. Professores e alunos, pais e não-pais conviviam permanentemente. Na escola. No açougue. No mercado. Nas vendas. Nos botecos. Na quadra esportiva da escola. No campo de futebol. Nas festas religiosas, pagãs, folclóricas, sociais.
Não-cidade, pois sem energia pública, não obstante circundada por dois enormes e históricos rios; pois sem serviço de esgoto, de água encanada e tratada. E os dois grandes rios ali, tão perto, que, quando vazavam nas cheias, quase tomavam algumas ruas. As ruas se faziam, muitas delas como se fazem caminhos naturais pelos assíduos ir e vir de homens e animais.
A iluminação pública precariamente se fazia à força de um gerador a óleo diesel. Fragílima claridade mal tingindo a escuridão da noite, cuja abóbada descortinava um céu de estrelas e luar visto assim em lugar algum. Ali as estrelas pareciam sussurrar de tão fulgurantes. A resplendência de luar inigual. Um imutável sorriso esplêndido. Aquelas tíbias lâmpadas de baças luzes não eram capazes de ofuscar aquela plenitude de luar de sertão.
Não-cidade. Pois onde diziam ser o seu centro (quanto mais então nos seus arredores), ouviam-se os grilos, as cigarras. Os vaga-lumes ziguezagueando seu pisca-pisca esmeralda.
O ar feito de brisa ou leve vento das noites de verão fortíssimo recendia o inebriante aroma de mata. Que com os rios e o muito após os rios aquele povoado circundava.
Não-cidade. Pois seus habitantes, econômica e culturalmente simples e remediados. Dois ou três abastados. Nada de os necessitados, tampouco mendigos. As divisas se faziam por cercas de balaústre ou tabocas. Dormia-se com janela à brisa. Não havia notícia de ladrões. As festas culminavam com bailes de terreiros em barracos armados com bambus e lona.
Mas a não-cidade continha traços de cidade: havia pessoas proprietárias de automóveis. Havia combis-lotação. Havia camionetes-carreto. Havia um posto de uma empresa de ônibus cuja linha ligava a cidadezinha à ultracivilização.
Depois, a não-cidade foi tomada por megaempresas que, em pontos de seus rios, erigiriam grandes hidrelétricas. A cidadezinha, desde então, envaideceu-se. Deu pra pabulagem: logo, logo se tornaria uma grande cidade grande.

Lagarticídio

Data 04/fev/2005

     Assaltou-lhe de súbito o mundo de destroços reiterados à saturação pela imprensa. Viera-lhe, ali, ante aquele minúsculo episódio, imagens das mais recentes catástrofes cujas conseqüências foram fatalmente as matanças colossais.
Passou-lhe recente tragédia desabada sobre os povos asiáticos. Aquele descomunal gigante, muito mais que Adamastor, enfurecido, soprando água sobre tudo, contra todos, sobre todos. Mal foi possível o salve-se quem puder.
Mar amansado por sua própria exaustão. Bicho resguardando-se em sua calmaria, foi que se pôde, então, dar começo ao dimensionamento do estrago. Devassa completa. E o número de mortos, dia a dia, semana a semana, a cada achado, aumentando de forma desconcertante. Mais de centena de milhares de vidas humanas (não contadas as outras).
Os mortos amontoados, esparramados em meio aos destroços. Eles próprios destroçados. Depois, corpos empacotados postos em rasas valas enfileirados. Valas abertas com escavadeiras próprias a abrirem buracos destinados a assegurarem sanidade à vida. E valas e fileiras de corpos embrulhados. E valas e fileiras de corpos embrulhados.
Esvaído o tsunami, o processo mental metafórico trouxe-lhe o genocídio no Iraque. As centenas de milhares de mortes praticadas de toda ordem. Os gigantes destroçadores são outros. São os monstrengos arrasadores. São os homens-bomba. São as degolas gravadas para exibição.
Ah! Iraque, Palestina, Israel, Egito, Iran, Estados Unidos da América do Norte! Por quê? Por quê!? E até quando?! E as respostas que lhe dão pelos jornais, pelas revistas, pelas entrevistas, pelas declarações não lhe respondem.
E em seguida o acomete os campos de concentração anti-semitas. Homens. Mulheres. Velhos. Crianças. Centenas de milhares. Aprisionados. Amontoados em toscos, rudes e fétidos salões esperando a vez de ir para os fornos cremadores. O horror ritleriano.
E desse conglomerado de judeus aprisionados para os fornos de Auschwitz é catapultado à Guerra de Canudos. O genocídio em Monte Santo. O amontoado de mulheres com seus filhinhos, cuja foto histórica ficou famosamente denominada “das prisioneiras”. Foram remetidas para as prisões de Salvador, enquanto os seus homens eram friamente fuzilados.
E de Canudos para Beslan. A escola de Beslan. As crianças de Beslan fuziladas dentro de sua escola! Fuziladas porque os seus assassinos adultos não se entenderam. E por isso mataram crianças, das quais se diz serem sem juízo. Os adultos, que têm juízo, mataram crianças!
E de Beslan, viu-se arremetido à chacina do Carandiru. Os corpos mortos. Uma centena deles. Depositados em urna de câmara fria a cadáveres estampados pela mídia. Daí, à chacina da Candelária. Crianças de rua assassinadas ali mesmo, onde dormiam, ao relento do pátio da igreja da Candelária.
O episódio minúsculo que revivificara-lhe tais tragédias: descobrira dois substanciosos ninhos (nunca os vira antes em sua vida) engenhosamente construídos entrelaçando as folhas de uma palma de seu decano coqueiro. Invólucro em forma de tubo resistente, seguramente protetor. E das demais folhas do seu pródigo e generoso coqueiro se alimentam.
A solução que relutara em admitir era extirpar os ninhos e matar as lagartas. Os ninhos fervilhavam de lagartas e filhotes. Decidira queimá-los. Usara jornal. Muito e muito jornal. Fogueira de jornal. E elas, às centenas, se contorciam agônicas.
Um espetáculo deprimente. Sentia-se um criminoso. Um algoz alemão jogando bandos de judeus nos fornos de Auschwitz.