Mãe

Data 06/mai/2005

A mãe de satã
que devia ser alguma leviatã.
A mãe de David
que não imaginaria
ter um filho assim.
A mãe de Golias
que decerto sabia
daquela sua mania.
A mãe de Jesus
que por certo
pressentia a cruz
mas que também decerto
não imaginaria
ser tamanha a via crucis.
A mães de João Batista
que morreria de desgosto
se viesse a saber
de um filho tão canhoto
capaz de viver de brisa
e gafanhoto.
A mãe Menininha do Gantoá
que Caymmi tornou imortal.
A mãe dona Canô
que nos deu Bethânia
e Caetano Veloso.
A mãe de Pedro e de Paulo
que reiluminaram este espetáculo.
A mãe de Zumbi
cujo grito de guerra
acordou-nos o sangue
tupi-guarani.
As mães violentadas
por seus maridos
ou por toda ordem de desordem.
As mães nos manicômios
cujas velhices degeneradas
são incômodos.
As mães que por vários motivos
choram por seus filhos.
As mães por cujos filhos
bandidos foram desdenhadas.
As mães tão-somente
Cama, mesa e roupa
bem limpa e passada.
As mães muitas
Cujos filhos se criam nas ruas
E que as vêm como prostitutas.
A santa mãe imaculada
de cada um de nós.
A Mãe-Terra de todos
que nos dá, nos reacolhe
e nos devolve,
prediletos rebentos
que eternamente a realimentam.

Cabeça de porco

Data 02/mai/2005

     No Roda Viva da Cultura. O cantor e compositor de hip hop sentado na cadeira em que circulam normalmente celebridades. Tanto do bem quanto do mal, ou nem tanto um e outro. O cara é da comunidade da Cidade de Deus. Tripla glória: além destas duas, publicara de parceria com outro um livro, resultado de longa pesquisa-entrevista com moradores dos guetos das grandes cidades (capitais) do País. Coisas sobre a vida marvada: violência, drogas, crimes, misérias, preconceitos, desempregos crônicos, desejos, anseios impossíveis instigados pelos meios propagadores das relíquias do mercado.
Cabeça de Porco, o título da obra. Os inquisidores no programa e telespectadores iam do conteúdo do livro à história do hip hop. Os primeiros transpareciam ter lido o livro, embora o mesmo não tivesse ainda oficialmente dado a público.
O compositor – por isso classificado ao final do programa pelo apresentador de “cara de pavio curto e pouca conversa” –, em atitude solícita, entre rispidez contida e respostas abruptas e diretas, parecia tenso, nada à vontade.
Todavia, quase tudo de todos era discretos e moderados elogios ao hip hop e ao Cabeça de Porco. O artista em voz abafada e cara amarrada sussurrava seus obrigados.
Descansado na poltrona, da qual acompanhava com atenção em sua tevê, ia entre acusando mentalmente o conjunto de pronunciamentos e perguntas de chocho e vazio e admitindo que o compositor era desenvolto, fluente linguagem, raciocínio lógico e rápido. E o teor de suas réplicas continha interessantes, significados, o que acabava dando qualidade de conteúdo aos banais assuntos decorrentes dos inquisidores.
Pensou também, longe mesmo de querer subestimar quem quer que fosse, que o hip hop, com o qual não gastava nenhuma parte de seu tempo dedicado à fruição estética, passara a ganhar muito mais bons olhares da média classe brasileira, depois que Chico Buarque deu de andar dizendo que o mesmo exerce um papel semelhante, e com mais contundência, pois que livre das mirabolantes e obscuríssimas metáforas, ao que ele, Chico, praticava com suas canções políticas no tempo da negra ditadura.
Cabeça de Porco parecia um trabalho sério e digno de ser lido. Mas o título da obra trouxera-lhe à tona um outro cabeça de porco. Muito provavelmente tão destroçado quanto àquele. Era uma periferia no último. E tida e havida como o antro da marginália. Expressão aristocrático-policialesca difundida e circulante. Para lá fora tangido por força da profissão, conquista difícil e disputadíssima em concurso público. A unidade básica de saúde do lugar recebera um médico que ali deveria dedicar-se oito horas por dia na labuta com as enfermidades que o procurariam.
E quantas! Muitas cujas causas eram de nutrição, de saneamento básico, de higienização. Bem depois das oito horas estabelecidas, ia para casa moído e desiludido quanto às suas receitas que abrandavam as conseqüências, mas incapazes de erradicar aquelas causas cujas doenças mantinham crônicas.
E logo se deparara com outras doenças tão graves como as manifestas fisicamente. Tratava-se de moléstias da alma. Terríveis moléstias mentais que quase o sufocavam, porque não pôde furtar-se em ouvi-las. Daí esperava o paciente umas palavras orientadoras do “dotor”.
Ele as foi dizendo, tais as ansiosas necessidades. E com medo de que estivesse receitando duvidosos remédios para aqueles muitos e comuns males de alma reinantes ali naquele cabeça de porco.
Não obstante a sua grande paixão pela medicina, era um médico jovem. Entretanto, fora aprendendo, aprendendo com aquele grande arsenal de miserabilidade humana. Miséria social que propiciava o alastramento da miséria mental. O que resultava em promiscuidades, em estados de violências: espancamentos; estupros; verdadeiros infanticídios: pedofilia; abusos sexuais de toda ordem; prostituição.
Um cabeça de porco que parecia fadado àquele destino. A politicalha mandava, perseguia quem se lhe interpusesse. Ele cedeu. Foi embora de transferência para o posto central. Abriu consultório, passou a escamotear seu trabalho no Estado. Entregou-se à vida que os verdadeiros donos dos cabeças- de- porco queriam.