Corpo iludido, mente tosca

Data 30/nov/2005

Confessava-se temeroso de parecer politicamente incorreto. Cara ultrapassado. Conservador renitente incapaz de compreender o novo. O mundo da internet operando virtualidades reais encantadoras. O celular concentrando os elementos da comunicação simultaneamente, permitindo que se fale, se ouça, se veja. Outro mundo.
Não há que ver, o profeta da comunicação fora de uma vidência impecável. A tecnologia tornara mesmo a Terra numa grande aldeia global. Sim, global, não igual ( o que talvez fosse a solução, mas que é apenas uma rima). Uma aldeia global multifacetada de ainda mais acentuadas diferenças sociais de toda ordem. Não, todavia, a diferenças dignas e merecedoras de respeito e consideração. Não.
Aquelas indignas. Aquelas que são notórias (e deveriam ser vexatórias) discriminações. Aquelas que são agressivas lesões à convivência social humana. Aquelas que privilegiam o poder da riqueza. Que implicam o aprofundamento da pobreza. Que implicam a manutenção da miséria. Que humilham o sujeito. Que estabelecem a subserviência. Que geram a indigência. Que perenizam a fome. Que marginalizam o homem. Que propiciam o furto, o roubo, o assalto, o seqüestro, o tráfico. Que sustentam o crime organizado. Que fomentam o crime desvairado.
Mas também se confessava incapaz de conivência com aquilo. O seu País continua no infortúnio. O seu País, que é o de seus filhos, sob as gritantes e degenerescentes diferenças. O seu País, que é o de seus netos, persiste em manter a política dos ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
As muitas diferenças estampadas em cada gesto; em cada veste; em cada residência; em cada condução; em cada fisionomia; em cada sorriso; em cada bairro; em cada restaurante; em cada bar; em cada supermercado; em cada linguagem; em cada fala; em cada programa de televisão; em cada filme; em cada música; em cada programa radiofônico; em cada igreja; em cada bebida; em cada marca de cigarro; em cada forma de se haver com a droga; em cada assistência médico-hospitalar; em cada assistência e atendimento odontológico; em cada atendimento bancário; em cada atendimento político-administrativo; em cada tipo de leitura.
E em cada escola freqüentada, a reprodução dessa estrutura não apenas mantida, mas expandida. A secular e unânime constatação de que as excelências escolares são para os ricos; as degeneradas, para os pobres. O ensino básico das escolas públicas oficiais, durante todo esse tempo tem funcionado como um gigantesco laboratório de experiências pedagógico-educacionais sucessivas, inacabadas. Que vem edificando progressivamente a ruína de um espaço que poderia, que deveria ser o lugar incomum para, se não extinguir, diminuir significativamente a diferença em educação e cultura. As quais implicariam a diminuição em todas aquelas outras.
Mas não. Essa escola, sob o paternalístico (sempre condenado, porém, redivivo) discurso de que se enraizara a prática da discriminação, do autoritarismo, da sadomasoquista reprovação, em virtude dos muitos erros e equívocos a que tais procedimentos efetivamente conduziam, essa escola passou a cultuar o predomínio do hedonismo: a recreação, o entretenimento, o esporte (“os jogos”) a merenda. O “respeito” à diversidade cultural; a maldição à repetência e à evasão; as pesadas punições ao que poderia ser considerado agressão verbal ou física dos professores; os experimentalismos dos métodos de alfabetização e os grandes equívocos e incompetências para com eles; a desqualificação massiva da formação de professores foram gerando um contingente assustador de analfabetos formais, que foi estendendo-se do ensino fundamental I para o ensino fundamental II, deste para o ensino médio, deste para o ensino superior.
Constata, pois, com muita consternação, o aprofundamento das diferenças de formação qualificada entre a escolas públicas oficiais (tidas como escola de todos) e as particulares. É certo que ainda as superiores estatais, de um modo geral, resistem (algumas a duras penas) a essa massificação deteriorante de ensino a que muitos equivocados insistem em denominar de democratização.
Toda e qualquer atividade proposta, hoje, na escola pública oficial que seja de caráter esportivo (“jogos”) e recreativo, o que significa a pura liberação de adrenalina, é exultante. Nem se fale, todavia, em atividade cultural, para a qual seja necessário concentração, leitura, reflexão, raciocínio, exigência e ocupação dos neurônios. É logo rechaçada, intolerável. Isso em plena Era Tecnológica, a que estaria, mais que todas as outras, propícia à aquisição dos conhecimentos.

O que vem assistindo e vivenciando, com a complacência e ação das magnas autoridades governamentais, com perdão do exagero, é a ilusão do corpo são e a  profusão da mente insana.

O que vai deixando de ser (e não podia)

Data 16/nov/2005

Um silêncio profundo dentro de sua intensa luminosidade. De um sol cegante de tanta ardência de luz. Sol tropicalíssimo com seu metal brasante pondo pavor em quem pensasse como seria o inferno.
As manhãs compunham-se tácitas sob a fornalha solar que, há pouco ateada pela aurora madrugadora, irrompia o dia, cada vez mais pleno até o máximo de seu fogo cáustico: o sol a pino.
Tácitas manhãs. Tecidas pelas leves, sutis e apascentadoras mãos maiúsculas da tecelã mãe natureza. Com suas muitas agulhas costurando a manhã. Artesã maestrina compondo com cores breves, efêmeras, indo do róseo-aurora ao ardente ouro da tarde plenificada. Para depois, então, pôr fim ao dia em tons próximos aos do início. Mas um róseo mais cóbreo-roxo.
As múltiplas agulhas gorjeantes tecendo o manto-canto, dando ao agudo silêncio seu mais depurado revestimento. Toadas antitéticas – canarinas, pardocas, pombalinas, rolinhas, siriris, bem-te-vis, sanhaços. À parte os colibris e as borboletas dando em cima das flores que desabrocham na ânsia de saciar sua sede de luz.
A agulha-vento com seus vários operários que só em casos muito graves se revoltam e, enfurecidos, tornam-se tempestades. A brisa. Ah! a brisa com seus sutis toques suaves passeando os corpos, penetrando os poros. Brisa mansa que beija e balança as coisas, os trastes, as folhagens, os miasmas, os pauis, os belos louros, negros e soltos cabelos.
A aragem. Ah! a aragem que torna ainda mais refinada a si a delicada leveza de servir-se de refrigério. Com sua indelével e perspicaz passagem mal fere a pele dos lagos, dos rios, dos mares. Nos homens, nos pássaros, nos bichos se limita, pudicícia, a percorrer tão-somente pelas penugens. Sopra-lhes o bom e inebriante frescor imperceptivelmente. Assim o faz em rítmica cadência alternativa com sua irmã brisa. Esta vem com seu bom e leve, mas acentuado sopro de boca cheia. Esvaziado, se vai, decerto, tomar fôlego. Então, em socorro, a arrefecer a ausência dela, entra a aragem com seus toques mágicos. Refeita a irmã, ela se retira agraciada, nada se importando com ser uma adjuvante. Sabe, por constatar nas faces, dos regozijos por tê-la.
É sabido também que sói acontecer, quando em vez, há de ver porque as irmãs hibernam-se em suas merecidas férias, vir ao trabalho a indolente viração. Há quem afirma que a viração é a plena maturidade a que chega a brisa. E que nesta fase age por si mesma. Em contínua durabilidade. Vara a manhã, a tarde e sustenta o bem estar da noite. Mas aí ganha uma camaradagem. Sucede-a, já quando a noite é andada, o arilho. Trata-se de um vento senhor. Senhor meio áspero, com alguns caracteres casmurros, com pitadas de rabugices. Por isso, quase sempre torna as altas noites frias.
A tarde o que faz é curtir a indolência advinda da dura incidência solar que a tudo fustiga com sua fornalha em pleno vapor. Põe tudo em modorra. Os bichos arfam ou adormecem sob a mais fresca sombra que as altivas árvores garantem (Mas elas estão progressivamente se acabando, que o homem, conquanto as saiba imprescindíveis, ainda assim as corta; que o vício das drogas acúmulo, abastança, poder não o deixa agir com os neurônios.) Os homens, nos seus afazeres, vão mais devagar. Assim, até a tardinha cair. É agora o sol quem vai modorrento. O crepúsculo acalanta-o de forma irresistível. Hefaísto cai em profundo e inabalável sono.
Eis então que a noite vem. Ficam ainda acordados, ávidos por cortejá-la, mal adormece o sol, os homens. Que os pássaros e os bichos, fidelíssimos ao dia também se recolhem.
Ah! a noite com sua corte. Seu manto negro acoberta infindáveis e excitantes segredos. A noite com seus sortilégios. A noite é sempre uma moça encatadora, cuja turba de convivas são sedutoras ninfas estelares. Todas sensualíssimas. Enfeitadas com seus diáfanos diamantes. A liderá-las, a filha mais prendada que a noite não entrega a ninguém. Dizem que, se o fizer, ficará completamente cega. E desse modo não mais conseguirá escapar, a cada fim de noite, da tara voluptuosa que por ela tem o sol.
E prescrito está pelos deuses que, se o sol a possuir, será o fim. E os tempos não mais terão noites E, acabada a noite, perecerão todos os que precisam adormecer para a vida. Dentre estes, os homens. Que perdidamente amam a noite, mas que também, mal rompe a manhã, acordam para se entregarem à devastação do planeta onde a noite se esconde.

Uma flor

Data 05/nov/2005

A flor da cidade. Uma magnólia exposta aos olhos todos cobiçosos e reverencidores. Olhos gordos. Olhos que buscavam devassar o intransponível. Por gula, prazer, admiração, ou somente a curiosidade feita das mais diversas intenções. Desde a comparação (em que sou menos que ela?) à ânsia de identificar um defeito mínimo que deporia contra aquele absoluto esplendor.
Uma pobre cidade pequena, modesta, o seu reino. Rainha inconteste. Portadora de rara beleza que mais esplendente ficava por seu dom de bela amabilíssima. Por certo continha as rédeas da vaidade. A todos com os quais se encontrava distribuía sorriso e cumprimento. O que a credenciava ainda mais em simpatia e bem querer. Bela, inteligente e cordial. Prenda-mor que a cidadezinha, orgulhosa, ostentava e difundia.
Também a protegia como sua mais cara relíquia. Era uma defesa natural. Como um pai protege a filha. Como um pastor defende suas ovelhas. Como um bicho cuida de sua cria. Os cidadãos todos da pequena pobre cidade se comportavam como naturais guardiões daquele patrimônio público encarecido. Houvesse algo errado contra sua magna donzela, rapidamente se informavam. E medidas imediatas se tomavam.
Parecia que ninguém ali pensasse em empreender uma decisiva ação de conquista a si do coração da magna donzela. Pertencia ela – patrimônio – à alma coletiva. Logo não podia ser de um só alguém. Não que isso se discutisse. Não. Tal fato era de certo um tabu. Todo o mundo, sem o dizer, sabia-o. Ela era uma pública donzela cujo usufruto particular, mais que um abuso, seria um imperdoável ato escuso.
Magnificamente vestida a caráter, ela assimilava os cortejos, o gracejos, os motejos (os velados desejos) os inumeráveis galanteios, onde fosse. No baile de gala mensalmente promovido pelo clube. Nas concorridas festas juninas para os fundos sem fundo da igreja. No palanque-mor, para prestigiar o desfile de aniversário daquela graciosa pequena cidade pobre. No carro-mor alegórico no desfile imperdível da escola de samba do município.
Cada momento desses, mais servia para a cidade venerar a sua deusa da beleza, que tão bem aqueles ciosos cidadãos tacitamente sabiam preservar. E a cada tributo desse, retribuía com seu efusivo sorriso, com a elegância de seus gráceis gestos. Inefável flor encantadora daquele rude jardim, cujos jardineiros esmeradamente a apascentavam.
Ela conduzia-se, não obstante jovem, com a maturidade de mulher plena. Não transparecia nela traços de pressa. Embora os anos andassem. Não havia notícia de quaisquer espécimes de homem em sua vida. Isso havendo, logo se saberia.
Sim, ausentava-se, rigorosamente, nos três meses das férias de verão. Para onde, exceto a mãe, que nada dizia, não se sabia. Nem se procurava saber, por que não se sabia, tampouco por que não se poderia saber.
O certo é que veraneava. Voltava ainda mais bela sempre. Três meses de tácita apreensão. O receio de que voltasse com um homem à tiracolo. O receio de que não mais voltasse. Cansada daquela vida de pura adoração. Desejosa de passar despercebida (o que por certo seria impossível), fosse para uma grande cidade, para nunca mais.
Mas os temores não passavam de temores. Voltava dourada para seus adoradores. E sozinha, como sozinha ia. E dedicava-se aos bailes, aos desfiles. Vestida de sua inigualável beleza, de seu humor, de sua simpatia.
A cidadezinha com sua princesa. O caso ganhou a boca do mundo. Em todo recanto se sabia do encanto que ali produzia a beleza daquela mulher. Encanto de efeito comprovado: zero, o índice de criminalidade. Zero, os índices de furto e roubo. Zero, o índice de indigência. Zero, o índice de pobreza absoluta. Zero, o índice de evasão e repetência escolares. Zero, o índice de mortalidade infantil. O fato, averiguado, causava espanto. Mas era uma singularidade. Algo tão intrinsicamente próprio daquela cidade. Não se prestava como modelo. Pois que, ali, brotara, naturalmente, como uma rara flor. E tudo fora se dando de forma simples e espontânea.
Todavia, deu-se o imponderável. A donzela bela, um dia, amanheceu morta. A comoção vazou por todos os poros da cidade. Espalhou-se pelo país a sua súbita orfandade. E ninguém se atreveu a conhecer a causa-morte. Era necessário, ainda que com muita dor, respeitar o seu direito de morrer. A verdade da morte não era necessária.
Decerto mudava seu modo de reger a paz daquela cidade. Passaria a regê-la morta.