A guerra está entre nós

Sentiu um gosto ruim. Gosto de impotência. Gosto amargo de estar cumprindo uma rotina com a qual se mantém e mantém os seus e que julga ser de utilidade pública, mas que de repente lhe parece inútil. Sabor de trabalho e disciplinas vãos.
Como todos os dias, manhãzinha já, ali a postos observando-os chegarem. Vêm, como ele, movidos pela mecânica da rotina. Mal têm consciência do que e do por que assim agem. Sabem, melhor, repetem o que todos dizem. Dizem os governantes, dizem os pais, dizem os avós, dizem os demais familiares. Então é ir para a escola “para ser alguém na vida”.
Á lacres, efusivos, risos, gritos, falando alto, vão entrando em grupos, a pé, em bicicletas, contando fatos, irônicos, humorísticos. E enquanto os observa a frase fica circundando sua cabeça, feito círculo vicioso. Frase estereotipada ainda com um certo vigor. Uma cômoda e pronta justificativa para se ir à escola.
E de imediato lhe vem à cabeça outra, não tão conhecida talvez. O verso machadiano. E então, parafraseando-o, se pergunta se teria mudado ele ou a escola. E logo se reponde que em verdade mudaram ambos. Mas a escola fora arruinada. Para responder aos organismos internacionais, os governos tornaram as escolas públicas oficiais com altas freqüências permanentes, baixaram as reprovações ou repetências aos níveis aceitáveis por aqueles organismos. Porém, assim o fez, e faz, mantendo um sistema de formação obsoleto e incapaz de qualificar e habilitar de verdade. Conseqüências são os humilhantes resultados das avaliações externas nacionais e internacionais.
Se passar pela escola continuasse sendo um lugar que leva as pessoas a “serem alguém na vida”, como de algum modo outrora isso fora verdade, não obstante as peculiaridades de cada tempo, e que também de certo modo continua sendo nas escolas particulares que se mantêm como centro de excelência de formação e informação, o ensino público oficial não seria essa terra de ninguém, onde cabem todos os experimentalismos, toda a moda da hora e da vez.
Seria outra coisa. Seria a utopia possível. Seria um sistema estável, seguro, passível de naturais transformações decorrentes das evoluções humana e social. Ali, sim, as crianças, os adolescentes, os jovens estariam vivenciando uma formação e um desenvolvimento garantidos por um sistema de ensino em que plena ou satisfatoriamente as informações, os conhecimentos, as experiências seriam trabalhadas, orientadas, direcionadas, acompanhadas por profissionais com formação, atualização e remuneração satisfatórias, com ambiente de trabalho e condições de atuação adequados, o que favorece e motiva o desempenho profissional.
E enquanto os alunos, conduzidos pelos sinais emitidos pela campainha, dirigiam-se à sala de aula, fora, vagarosamente, ele também se dirigindo ao seu posto de trabalho. A cabeça ainda fixa nas reflexões que fazia. E ao completá-las, concluíra que, todavia, a situação deteriora-se a ponto de chegar àquilo: a ordem social, as garantias de uma vida livre e sã à beira do caos. Havia mais que um ar de podre naquela república do futebol e do carnaval.
As organizações clandestinas de poder sustentado pelos tráficos, pelo crime, assaltos e seqüestros novamente declaram guerra contra o poder constituído pela legalidade em nome de uma democracia formal, sob a qual outros tipos de assaltantes, outros tipos de organizações criminosas (por certo, historicamente, bem mais antigos do que aqueles) agem voraz, despudorada e impunemente.
Sob esse fogo cruzado ficam os trabalhadores de um modo geral (braçais, intelectuais, empresariais) produtores da riqueza, que pagam pesados e múltiplos impostos de toda ordem e que, como se isso não bastasse, vêem-se ainda à mercê dos assaltantes em sua casa ou apartamento e logradouros públicos.
Cidadão brasileiro! Arrematou o pensamento, lembrando-se daquele personagem de Chico Anísio. Quando os criminosos organizados se desentendem titãnicamente, correm para suas tocas, ficando a imagem sinistra de uma das maiores cidades do mundo completamente deserta, evocando aquela imagem de Bagdá na iminência de ser atacada pelas tropas de George Bush.

O vinho do poder

A taça de vinho. A noite sendo tomada pelo frio. Fazia-se cada vez mais proeminente o inverno. O jornal aberto em cujas páginas políticas pululavam notícias, fatos, depoimentos. O país passando por novos percalços. Mais de vinte anos depois de restabelecimento da democracia liberal, ainda se conduzindo por terreno escorregadio, de planuras e buracos, de ladrilhos e lamas.
Inumeráveis e multifacetadas cenas de terror e dor passadas na construção de ansiadas liberdades democráticas. Que pareciam ainda longe do idealizado. Dessas muitas cenas, uma, agora, ali, evocara, cujas elucubrações políticas, partidárias e eleitorais vararam madrugada adentro sustentada por muitas garrafas de vinho.
Era um tempo em que reconstruções precisavam ser feitas. Cada qual fizesse a seu modo. Conforme suas possibilidades. Cada qual desse de si seu quinhão. A causa pedia um pouco de desprendimento. Valia o que fosse feito com entusiasmo, dedicação e responsabilidade. Tudo para que se pudesse reinaugurar, ou inaugurar um estado democrático estável.
A instabilidade de um país que nunca parecera ser efetivamente confiável a seus próprios herdeiros. Estes mesmos talvez se sentissem frágeis. Ainda no fosso da impotência. Nada consistente e verdadeiramente nacional, patriótico nele houvera se desenhado como o rumo, o caminho para seu lugar.
Até ali não chegara a terra de país arrasado, porque, de fato, incomensuráveis são os filões de sua riqueza. Por mais que o tenham espoliado; por mais que tenha sido submetido a terríveis sangrias; por mais que tenha visto devastarem sua mata, envenenarem seus rios, exterminarem seus pássaros e animais; por mais que tenha visto o seu céu de nuvens e azul sempre pinturescos e o puro frescor de seu ares irem degradando-se em cinzas e putrescências; e que por muitos mares bravios tenha sido atormentada esta Ilha de Vera Cruz, esta Terra de Santa Cruz pela nobreza assim denominada e que a singeleza do vulgo preferiu chamar de Brasil, em que pese terrivelmente isso tudo, não sucumbiu, não soterrou.
Todavia, também não se melindrou em disparar o alarme, em acender suas luzes vermelhas. Tais sinais, ainda que brisas boas tenham perpassado, ainda que tenham surgido frescas garoas, ainda que fértil chuva e sol fecundo não a tenham esquecido, tais sinais continuam alarmando, continuam acesos.
Era, então, também uma noite de inverno anunciado. Eles eram três homens cheios de esperança com suas utopias muito semelhantes e vivas. Advinham de empenhadas ações de combate durante todo o período daquela ardilosa e destrutiva ditadura de décadas. Haviam trilhado pelas mesmas veredas na conquista do estado de direito democrático. Foram assembleístas. Foram debatedores. Foram grevistas. Foram aprisionados. Foram radicais. Foram marxistas-leninistas. Foram guevaristas. Foram diretas-já. Foram tancredistas.
A hora era de começar, fazendo a lição de casa. Urgia, mais do que nunca, que ali no município deles fosse inaugurado o estado de direito. Combinaram encontro em que debateriam como fincar o pau da bandeira que iria tremular a altíssona convocação para a cívica instalação da democracia pelas eleições que se anunciavam.
Encontro marcado para certa hora já ida da noite, pois que até ali estaria ainda cada qual em seu trabalho. O bar, que os teve sempre por bem-vindos, tratou de acantoná-los em certo lugar reservado, onde planeariam sua grande tomada da Bastilha. Chegara a hora do basta aos modernos coronéis antiprogressistas. Sob o mando desses senhores a cidade era uma ilha de atrasos cujas circunvizinhas estavam a décadas de progresso. A grande maioria da sua população estava gritantemente empobrecida.
E o vinho predileto aplacava a sede de justiça e progresso daqueles três mosqueteiros que conspiravam contra os opressores de sua espoliada cidade. Complexas questões de luta eleitoral foram delineadas. Madrugada ida. Garrafas de vinho esvaziadas. E todo eficiente trabalho emperrado num ponto. Eram três partidos que depunham à mesa de negociação quase tudo. Menos a condição de ser a tal cabeça-de-chapa.
E partidos ficaram. Cada qual com sua cabeça-de-chapa, permitindo assim que a tal cabeça antiga se mantivesse devoradora voraz e intocável. Enquanto os três outros, embebedados de si mesmos pela transformação do poder, continuariam voltando para casa de vinho tinto entupidos.