Inútil resistência à inutilidade

Data 27/fev/2004

     Estremeceu. De certo modo agiu com determinação para que um dia, logo, breve, soubesse devidamente do que acabara de saber. E como se para espicaçar seu indômito inconformismo, a brevidade não se fizera. Algumas ordens de empecilho se interpuseram a ponto de o que supunha fosse uma questão de semanas tornou-se meses. Meses longos, longos, que o irritaram pesadamente.
Não havia caso anterior que ao menos se igualasse a tanta demora. Fora a quase injúrias explícitas. Tal ineditismo haveria de se dar justamente com ele, dar-se exatamente quando chegara a sua hora. Ele que, quando exercera poder de agir em situações dessa natureza, nunca admitira que pelo menos metade do tempo que lhe coubera pudesse se passar com os requerentes.
Mas, enfim, não obstante estes percalços todos, cujo fato em si mesmo – a extrema morosidade – muito o aporrinhara, sobretudo por julgar-se um sujeito digno de consideração e respeito, o que pretendia se consumara. Fora oficialmente dado em condições de requerer, quando o desejasse, sua aposentadoria. Era a, naqueles meses obsessivamente ansiada, consolidação legal-burocrática do tempo de trabalho que o tornava apto a deixar o trabalho.
E surpreendentemente não se alegrou. De certo, mecanicamente, aspirava, posto que o fizesse de forma muito velada, diria mesmo que secreta, à aposentadoria como via e ouvia todo o mundo manifestar. E as imagens que o acercavam também mecanicamente consistiam nos estereótipos que tais manifestações emanavam. Liberto das amarras do horário a ser cumprido. Liberto para as programações que lhe conviessem. E os estereótipos pululavam em sua cabeça: vestido de pijama; organizando pescarias; programando viagens; jogando cartas; organizando churrascos de fins de semana.
Contudo, acontecia algo, uma particularidade que nas imagens insurgentes percebia: em todas as situações representadas, o homem que deveria ser ele estava gordo, mais propriamente barrigudo, ombros encurvados, cabelos grisalhos.
Estremeceu. Em verdade, embora estereotipadamente nunca se pronunciara em desfavor da aposentadoria, nela também jamais pensara, melhor dizer que circunstancialmente em ocasiões em que a mesma figurava como protagonista de conversações ou festas comemorativas. Sim, via de regra, as aposentadorias são comemoradas. Armam-se festas em homenagem ao aposentado como se a um condecorado com honras e méritos.
Estremeceu. Tinha a aposentadoria à mão. A bem dizer, verdadeiramente, não se dera conta disso. Se atingira o tempo limite, não conseguia enxergar aquilo como a condição para que deixasse de atuar, deixasse de fazer o que desenvolvia com gosto, entusiasmo e projeções a atingir. Se aposentadoria significasse um substituto ao esgotamento disso, seguramente não se achava preparado para recebê-la.
E repassava-se. Automirava-se. Cotejava. Não. Não parecia obsoleto, desatualizado, preso a inoperantes conceitos e métodos. Concluíra por considerar-se um cara sintonizado. Outro fator que o incompatibilizava com aposentadoria.
Havia, porém, um clima generalizado de incomodidade. Deixar de aposentar-se incomodava. E essa incomodação de alguma forma o incomodava. Então, posto que fortes vozes ressoassem apontando-lhe o que entendiam justos motivos, resistia preso ao medo de deixar de ser, caso se decidisse por deixar de fazer.

Sobre uma das mortes não-anunciadas

Data 20/fev/2004

     A caminho de casa. Findava o dia. Desde a primeira hora apta a início de trabalho – sete da manhã, à última. Nada a reclamar. Não desgostava em absoluto do trabalho que mantinha digna sua e outras vidas dele dependentes. Apenas repassava a consciência e constatava um cansaço decorrente. Mas cansaço confortável, dissipável. Já o ato de ir para casa tinha a impulsão da ávida necessidade do exercício físico. Corrida ou natação, ou halterofilismo. Era o seu real descanso. Lavava-se em suor em sua longa corrida. Desfibrilava os pulmões, tonificava os músculos dos membros.
Uma quase mesmice, quase repetitiva rotina de um sujeito cidadão registrado na malha da escorchante tributação oficial violenta ao pouco pecúnio proveniente do trabalho.
O retorno a casa em sua primeira pausa de jornada total se fazia. Ia com pressa, que antes do início da segunda etapa, a impulsiva e imperativa determinação das endorfinas exigia o exercício do dia.
Numa das travessas de seu trajeto, uma quebra da rotina das ruas e avenidas, onde veículos autômatos trafegam induzidos por suas obrigações a cumprir. Todavia, nada extraordinariamente inusitado. Nada que ainda não compusesse o catálogo dos fatos ocorrenciais no trânsito das malhas viárias citadinas. Certo é que uma colisão, um atropelamento, sempre incomodam almas, além de fluxo, e sempre atrai a mórbida curiosidade do animal humano transeunte.
Quando ali chegara e efetuava a melindrosa travessia – muita gente na pista a pé, ciclistas, automóveis curiosos trafegando morosamente – já havia o serviço policial de trânsito que atuava em sua burocrática operação autuadora, já o serviço ambulatorial móvel prestava os primeiros socorros.
Fora se livrando de tudo aquilo pelos espaços mínimos cuidadosamente. Tinha a atenção fixa em sua operação-ultrapassagem. Então vislumbrava apenas fiapos do sinistro. Feita a travessia, já retomado o ritmo do retorno, certamente alterado pelos bloqueios, com a cabeça distraída e fixa no que havia ainda por se feito naquele dia que se completaria com a noite já bem ida, fiapos daquele sinistro foram se compondo. Aparecia um jeep luxuoso em posição perpendicular; uma motocicleta retorcida uma silhueta de corpo estendido. Era tudo. Concluíra o pensar sobre aquilo pelo corriqueiro conformismo que se formula no desejo de que tudo acabasse bem.
Estava em pleno cooper. A rodovia em seu denso movimento. Já atingira o ponto prazeroso (e perigoso) da corrida, quando se desencadeia a vontade de ainda mais. A tarde morria. Consistia sua tarefa em um percurso de ida numa pista e de volta noutra.
A noite ia tomando conta. Na cabeça, a etapa de trabalho a se reiniciar daí a pouco. Os veículos trafegam com suas luzes acesas. Estava no trecho em que a rodovia, com seus altos abarrancados, faz-se um gigante corredor.
Então viu, ainda meio a distância, vindo de encontro a ele um pequeno cão, que, talvez também por vê-lo, estacou um instante e depois pôs-se a ir no mesmo sentido e mais apressado. Começou a sentir medo. O tráfego era intenso.
E aconteceu. O cãozinho entrou na pista e não conseguiu atravessá-la. Escutou os baque e o grande grito. Foi espedaçado, consolou-se. Mal sentiu a dor. Não fora, todavia. Ficou estático uivando a sua dor na pista. Automóveis vinham em fúria. Resolutamente, adiantou-se, tomou o cão pelo rabo e o atirou na vala entre as duas pistas.
Mas, seguindo embora começou a ficar arrependido. Ele talvez sofreria muito ainda antes de morrer. Melhor teria sido ficar na pista para o tiro de misericórdia.

Invidência

Data 06/fev/2004

Não. A vida não tem medida. A sina nem é destino e não é absolutamente construída. Todavia, as vozes em prol do acaso não são tampouco completamente infundadas. Há em tudo excesso e acerto. O enigma é uma realidade da condição humana. Por mais que ceda à indômita e insaciável investigação do homem, prossegue enigma. Vivo filão de entranhas túrgidas, obscuras, indevassáveis. Plosiva mina borbulhando de matérias sucessiva e concomitantemente renováveis.
Não. Viver jamais é ir em linha reta. A retidão é o canto complacente e nacisístico meufanando suas (in)seguras e (in)sólidas verdades para o absolutismo de seu domínio feito a medo. Várias são a linhas. E, pois, se existem são reais e verdades. Há curvas, sinuosidades que certamente retas compõem.
É isso, pois. A vida é o inacontecido por vir. Vivê-la dá sabedoria para se saber vivê-la. O inaudito, o imprevisto, o não-descrito, o sabido limite-ilimite: a vida é inconcebível, embora se passe a vida interira concebendo-a.
Por exemplo: por que o acometera aquela lembrança, ali, agora, quando o olhar vazio circunvagando na distraída apreensão de inexistentes imagens; solto o pensar, nem sismarento, nem reflexivo, tampouco disposto ao elucidativo. Um olhar que, se não perscruta, também não cuida. Vai de um quadro ao nada. Do nada a outro quadro. Plantados em sua cabeça alguns fiapos caros incofessos a si mesmo. Pouco dados àquele estado. Todavia, uma viva imagem, fixa e sentida, acalanto e despedida, veementemente dissipada, enxotada. Imagem amada. Imagem para sua toda vida.
Mas nada daquilo se definia pela retidão de uma linha. Pois tudo que é vida mesmo impulsivelmente se desalinha. Vagava. Dos quadros às poucas plantas, aos móveis ainda menos. E a demorado espreguiçamento acaba ocupando desarraigada imagem. Imagem retecendo um vivido que, ao reconhecer, arrepiou-se. Não sabe se de medo ou de arrependimento, pelo que supunha jamais poderia lhe insurgir.
Mudara de espaço, se bem que tivesse vários traços de proximidade com o onde com ele convivera. Não. Havia mesmo semelhança, situações comuns. Num movimento contrário fora de alto cargo a outro abaixo, exatamente de onde ele se alçara.
Pacato homem. Cuidada mansidão. Que diziam apenas com os superiores. Um ancião em relação a ele. Contudo, a vida o tornara um superior daquele pacato e respeitabilíssimo senhor. E este lhe dispensava um tratamento refinadamente, impecavelmente, como deve dispensar um subalterno de retidão a seu superior. Era um ancião superior na arte de praticar a subalternidade. O que o deixava transtornadamente vexado, irreparavelmente incomodado. Em vão suas insistentes solicitações para aquele bom senhor não o tratar daquela forma. Nada. O ancião era todo reverência e honesta subalternidade.
E ali, agora, naquela morrinha, acomete-o aquele dia: ele diante do féretro daquele seu senhor subalterno. Queria afastar-se e não conseguia. O morto parecia nunca acabar suas reverências à generosa e honrosa presença dele ao seu passamento.

Viuvez

Data 13/fev/2004

     Pacato cidadão senil. Governava-se com pouco e uma quieta fé. Modos de homem provindo da roça. Fala calma e pausada. Riso grosso sem gargalhar. Morava com a mulher. Tinha netos crescidos. Os filhos, quase todos, e não eram poucos, aparentavam com ele mais como irmão. Davam-se bem com o pai. Visitavam-no periodicamente. E se sabia que assim era por respeito inamovível, consideração muito alta, admiração eterna. Nada tinha isso com a beatitude líder agregadora de crentes adeptos de suas espíritas pregações.
Sabia muito pouco daquela atividade dele. Quando se mudara para ali, o lugar compunha-se de três casas. A dele ocupando uma esquina, como a sua. Ao fundo um rústico templo encimado por uma cruz que se ilumina. Duas vezes por semana, à noite, a freqüência aos rituais religiosos que, por certo, ele dirige. Nessas noites, o então ermo lugar, povoava-se de automóveis de procedências municipais diversas. Testemunhos da fama de seus trabalhos religiosos.
Têm os negócios do sobrenatural, como poucos, esta extraordinária capacidade de reunir, sob um mesmo teto rústico, os muitos diferentes. É certo que sabem daquela provisoriedade. Todavia, durante esse tempo, praticam a solidariedade e o reconhecimento do outro. Ainda que, logo depois, já ali, na rua, quando reassumem a condição constituída, esqueçam o que lá dentro foram. É certo também que vão ali por si mesmos. Move-os para ali os seus interesses, as necessidades de cada um. A intercessão de um milagre de cura, por uma apaziguação do espírito, coisa, decerto, desse teor que ele com eles buscam construir sob preces e cantos e louvores. Entretanto, estas dependências comuns os igualavam ali na condição de penitentes.
E a tudo presidia com sua tranqüila conduta de homem diferenciado, sobretudo pela sua condição de ser admitido como um intermediário entre o natural e o sobrenatural. Age vive do modo como estes entes fazem. Vida simples, não-desconfortável, mas reduzida ao mínimo necessário.
Não sabia se o sustentava alguma parca aposentadoria, se os adeptos contribuíam. O certo é que tudo de seu é o mínimo: a residência, a bicicleta, as ferramentas. Ele manteve o hábito de confeccionar vassouras. Plantava-as nos terrenos baldios concedidos.
Já há muito, vivia com a segunda mulher. Soube que a viuvez o tornara mais recluso e certamente fora a responsável pela depuração daquele seu dom de espírito elevado e o impeliu a agir pelos outros com a construção do rústico e modesto templo.
À noite, dali, vinham pregações compassadas, em tom altivo. Com pausas entremeadas de dolentes cantochões. Um como outro imiscuíam pela noite ainda ali muito mais escura.
Quando lhe morrera a segunda mulher, sereno, mas abatido, dissera-lhe, conformado, todavia muito triste, que sempre julgara ser a vez dele a hora de morrer.
Não muito depois, já com ele convivia a terceira mulher. Vistosa, parecendo acentuadamente mais nova. E os anos se vão. Viam-se pouco, embora vizinhos. A nova mulher, vistosa, sempre ao lado.
Dia desses, passando em frente à casa dele, lá estava o casal na mínima área que dava para rua. Mútuos cumprimentos, calorosos de apreço. Seguiu com a imagem de uma mulher idosa, senil. E ficou por longo tempo com a forte impressão de que não lhe tardaria a terceira viuvez.