Caras – crianças

Data 16/jan/2004

     As crianças. Nelas, o reino dos céus. Significantemente estridulam alegrias. São, à vida, a cor da coragem. Impulsão ao sonhar construtivo. Criança aguça uma vontade indescritível de instaurar o singular. Criança esmera em ser ação e descoberta, insaciedade e retorno.
Quase impossível estar indiferente ante uma criança. Nela nasce o destemor movido pela curiosidade diante da qual, depois o adulto, senhor de plena consciência, terá que se resolver.
Criança é vivo segredo latente em vias de desenvolvimento. Não como o resultado de um ovo cujo fim é a repetição do modelo. Não como o resultado de uma semente em que também o ato de clonagem da natureza se estabelece. O segredo que carrega consigo está em seu indevassável espírito. Não visto, mas sabido e vulnerável às intempéries das ações dos adultos. Criança é transparência. Estampa sua têmpera. O gênio do homem bruto fica à amostra. Entregue à lapidação pelo convívio em que concorrem o adestramento, o amestramento, a educação. O bruto já se faz de criança. O culto já se faz de criança. O estúpido já se faz de criança. O fraterno, o terno, o mago, o sábio, o pulha já se fazem de criança.
Criança avança, estaciona, regride. Encanta, desvanece, emociona, desarma, rejuvenesce, surpreende. A criança, todo cuidado é pouco. Com criança, é preciso sempre estar de olho. Com criança, é conviver com o desassossego. Com criança, não é permitido estar sem tempo. Com criança, não há prioridade maior. Com criança, suspende-se o sono ininterrupto. Com criança, a pressa é verdadeiramente inimiga. Com criança, não se briga. Criança não se intimida. Criança facilmente se traumatiza.
Criança é exímia em fazer pelo diálogo. Prima pelas indagações, pelo questionamento. É versada em argumentar. Criança é solta, desenvolta, desde que a não tolham. Nada como ela é dado a perdoar. Basta se querer ver: para conquistá-la, um doce é grande engodo. A guloseima mesma da conquista é a sincera declaração de amor. Que ainda é muito incompleta, se apenas com palavras. Nada como criança é tão apto a constatar amor, quando o compõem gestos, presença, devotamento, carinho e atenção.
A candidez da criança é a toda prova, se o adulto assume a coragem de encará-la. Daí que para ela o universo é único: crianças são crianças; adultos são adultos. Não a atrai e a prende o custo de um brinquedo, mas o gosto por ele, o acesso a ele. No mundo igual e único da criança há pessoas, há animais, há comidas, há brinquedos. Em verdade, sua animalidade é que preserva o saber distinguir os que não são mãe nem pai; os que não são avó nem avô; os não-tios nem tias. Daí talvez que custem muito a compreender as proibições decorrentes das divisões de classe social. Para criança, escola é escola; automóvel é automóvel; casa é casa; brinquedo é brinquedo.
Criança é antes de tudo filho. Que pressupõe pais. Uma relação tão elementar e simples, complexa e não-fácil. A criança é filho do homem. Nela está a paternidade ou não-paternidade. Tal pai, tal filho: nem tudo, mas muito. E não há criança nem homem depois, se pai não há; muito menos ainda há criança, nem homem haverá, se mãe não houve.
Criança ri à toa. Criança sabe poucas e boas. Criança não recua por qualquer garoa. Criança é teimosa, não desacorçoa. Somente criança mais e mais se aperfeiçoa. Em confiança, criança, não importa a quem, inteiramente se doa. Criança não é alternativa, tampouco a medida paliativa. Criança é a única saída.
Um país, seu governo e seus parceiros de poder e mando têm a sua real face estampada na imagem de suas crianças. A cara das crianças é a cara de seu país.

Ser com

Data 09/jan/2004

     A vida maravilhosa ou malvada; estrepitante ou silenciosa; venturosa ou desventurosa; famosa ou anônima se encaminha para o seu fastígio único e enfático: a morte. Em que pese na sentença o tom lutuoso, tétrico, é assim.
Mas esta dádiva cuja expectativa é dar à morte o mais longo adiamento possível, dela ir ganhando as partidas, embora se saiba ser-lhe a vitória final, é o grande mistério: a vida. A vida que brota de um óvulo, de um ovo. E em forma de homem é ente dotado de inteligência. Pensa, age, cria, inventa, transforma, se emociona, chora, ri, sofre e ama. Em forma de bicho, age. Ao que se sabe, não pensa. Logo não cria, não inventa, não transforma. Age movido a sede, a fome, pelo frio, pelo calor. Porém há evidentes manifestações de dor, de irritação, de medo. Se domésticos, mais depuradas ainda. O contato, a convivência com os homens decerto.
E os cães apegados aos homens apegados aos seus cães figuram como os mais próximos ao desenvolvimento de uma inteligência animal possível e provável. O cão de uma casa é um animal humano. Tem a vida observada, interacionada com os componentes da família. Seu crescimento; seu desenvolvimento; sua infância, como a de uma criança, composta de peraltices que provocam graças e broncas. Aprendendo o modo de conviver em família. Aprendendo a comer de sua comida, a beber de sua água, a recolher-se em seu abrigo, ao mesmo tempo em que a natureza o vai movendo em seus dotes de animal canino: estranhar e latir para os que não da casa; não gostar de gatos, incondicionalmente, os que não da casa; aos dela suportar.
A sua vida fora povoada de cães. Não se lembra ter havido casa de tios, avôs em que não os houvesse. Todos tinham o seu cão, ou os seus cães. Cães com os quais as pessoas mantinham um relacionamento de afetividade. Falavam a eles. Conversavam com eles. Era uma família que passava como herança tácita o amor pelos cães. A inconcebível condição de não se ter em casa um cão. Casa sem cão é casa em falta, casa incompleta.
Também se lembra de outro aspecto comum e predominante na questão cães dos familiares: a preferência pelos de grande porte. E como fora um tempo em que cães se ganhavam de alguém, algum dono de cadela, que cruzada com um cão de outro, dava sua ninhada, cujos filhotes às vezes já eram encomendados desde a gestação, os cães eram objetos de ajustados, bons e honestos acordos. Não se tinha notícia, não se ouvia dizer de negócios de cria e venda de cães. Cães eram, quando muito bons e enternecedores presentes. Exceto, verdade se diga, as crias de cadelas vira-latas sem nenhum prestígio, ou moradoras de rua.
E o berço lhe transmitira a irrefutável necessidade de conviver com cães. E, homem seguindo o ciclo da vida, os foi tendo. Apenas não seguira o rigor do figurino preservado até uma certa geração. É que gostava também dos cães pequenos. E os teve conjuntamente com os grandes. Outra ruptura com o figurino, o ter um, quando muito dois. Ele os tivera aos três, aos quatro, aos cinco. Muitos dos ortodoxos parentes desaprovavam declaradamente tal procedimento. Ele rebatia dizendo das informalidades e casualidades. Os cães aconteciam em sua casa. Cada qual tinha uma história de origem. Origem nunca programada por ele. E os seus familiares estavam envolvidos em cada uma das histórias de aparecimento de cada um dos cães. O que parecia fortalecer ainda mais os laços afetivos entre todos eles. Acabaram por aprender que um cão era um solitário. Dois era pouco. Três era bom. Cinco era ótimo. Cada cão com seu modo de ser diferente do dos outros. E a somatória daquelas diferenças era a causa da satisfação familiar de com eles conviver. O que desarranjava, causando consternação geral e mesmo lágrimas em uns, era quando chegava a vez da morte ganhar a partida definitiva. Fato ocorrido há pouco com um querido pastor de dez anos de amorosa convivência.

Inconformada esperança

Data 03/jan/2004

 

A imagem abominável
de Hussein,
o bufo desdém do Establishment,
a rotina assassina
israelita
palestina;
a fome,
peste a que todo
o mundo se contrapõe
e no entanto a mantém;

as ditaduras empedernidas
subsistentes
na contramão da história,
subsumidas
na história da contramão;

os revertérios nazi-fascistas
em cabeças moças
escangalhadas;

os governos dos pobres
empobrecidos
ante o brilho sedutor
dos eternos ricos;

a violência,
a virulência,
a bárbara arte de matar
de uma Era humana
tida como
hirperevoluída;

dois mil e três
anos depois,
riqueza
pobreza
nobreza
poder
centro
periferia
excluídos
persistem sendo
categorias
de classificação humana.

A Terra dá mostras
de seu cansaço:
o fim de seu azul
está a passos;
súbito terremotos,
vendavais
devastam.


Somos o caos
e a ordem
desta Terra
cujo Cosmo
que a preserva
a distância enxerga
a autofagia dos filhos
que tanto a contrista.