Iniciação

Data 26/abril/2004

     Propagadores de produtos havidos como educativos e pedagógicos. Vendedores de objetos e materiais tidos ou difundidos como educativos ou pedagógicos. Cursos de várias naturezas. O cotidiano das escolas é recheado desses procedimentos. A informalidade trabalhista deve ter contribuído muito para que o fluxo de tais atividades se expandisse. E educada e democraticamente atendê-los significa não apenas desestabilizar as atividades escolares, como descaracterizar os fins de um sistema e ensino.
Então ali, em razão do conjunto de conseqüências danosas, não era permitido entrada de elementos estranhos à sala de aula. Decisão tomada pelo Conselho de Escola, referendada pela APM e corroborada pela assembléia de pais.
Não obstante, às vezes surgiam alguns casos que, ou ainda não haviam sido informados do procedimentos daquela escola, ou, ainda que sim, sempre acreditavam em seus poder de convencimento e lá iam.
Recebia-os. E pachorrentamente aturava ( havendo tantos afazeres esperando a vez) o discurso inócuo proferido pelo vendedor/propagador desfiar as grandes propriedades de seu produto para o desenvolvimento do ensino, as vantagens econômico-financeiras ao orçamento familiar dos alunos; os brindes para serem sorteados entre os mesmos; outros tantos à escola; o estabelecimento de parcerias que eles enfatizam ser recomendadas e aplaudidas pela Secretaria da Educação.
Depois, ou antes interrompendo, quando o bom senso daqueles não age, a direção pachorrentamente sentecia o não seguido do discurso justificador. E nem sempre o indivíduo dá- se por satisfeito, por isso as cenas se repetem (os muitos afazeres esperando a vez).
Por vezes a situação quebrava a rotina. Certos imprevistos desagradáveis se deflagravam. O indivíduo exigia a concretização de seu propósito, porque a Diretora de Ensino não se opunha; porque o que apresentava era recomendado pela Secretaria de Educação; porque a direção agia de maneira discriminatória, não permitindo que os alunos e seus pais pudessem exercer o direito de conhecer o produto e decidir por si mesmo; porque ali se vetava a ocorrência da modernidade educacional que, segundo a mesma, a escola precisa integrar-se à comunidade.
Todavia, a resistência foi minando as insistências, mesmo os mais ousados, já não se destinavam a perder tempo em terreno comprovadamente estéril. Assim, a escola conseguia funcionar defendida pelo menos dessa intrusão, pois já convivia com muitas outras, contra as quais não podia aplicar o mesmo dispositivo preservador.
Não ficara absoluta e definitivamente, como tudo na vida, livre desse inconveniente. Tempos se passavam. Súbito surgia uma tentativa. E assim foi que certa feita dois deles (aparecerem em dupla, não era incomum) foram anunciados. Ao apresentarem-se um deles, olhos fixos no dele, sorriso aberto, se disse ex-aluno, o Bruno, e que vivia citando-o nas conversas, quando o assunto resvalava para escola, qualidade do ensino, importância do professor. E ouvia o mesmo de muitos outros presentes à conversa. Estava feito o cortejo.
O outro se limitara ao cumprimento e à apresentação habitual. Sentados, Bruno assumiu uma postura solene, assacou uma revista que apresentou como de veiculação tradicional e amplamente aceita no mercado em virtude de suas sólidas e indiscutíveis qualidades educativas em sentido amplo. Educação ambiental; saúde prevenida, valores relacionais humanos. Fácil, agradável e atrativa leitura. Seguramente um complemento pedagógico de alta qualidade.
Ele, como de costume, pacientemente ouvindo, prestava atenção tanto à verve de lição muito bem decorada de Bruno quanto às atitudes do colega que a esse observava com disfarçado interesse. Esgotada a bem ensaiada prolação, deu a sentença conhecida e esperada pelos mesmos. Então o outro falou. Solicitou que ele ficasse com um exemplar pelo menos. Era o valor de que dependia a refeição de ambos aquele dia.
Perguntou ao acompanhante se o desempenho de Bruno havia sido aprovado. Surpreso, o acompanhante olhou-o por alguns instantes, olhou para Bruno e argutamente lhe devolveu a questão perguntando o que ele, como ex-professor reverenciado, achara. Disse que sem dúvida aprovava-º
E ambos agradecidos foram-se embora com o almoço do dia garantido.

Desvisagem

Data 19/abril/2004

     Então a velhinha animada à espera de sua vez era toda tagarela. Acima da escala dos demais, fala alta. Ria estrepitosamente. Transpirava felicidade. A que ganhava em riso estabanado e voluntário. Via-se que a espontaneidade a movia.
O forte em presença era mesmo de anciões. Os não-anciões, bastantes, eram seus condutores e acompanhantes.
Conversar para costurar o tempo. Para torná-lo com algum sentido entre o intervalo que ele com seu nada demarca. Senti-lo vivenciá-lo em seu vazio de silêncio é algo decerto insuportável, principalmente aos idosos.
O vazio do silêncio aciona o descortinamento de lembranças e recordações. O que por certo dá à vida o tamanho dá escassez de seu tempo. O que conscientiza a velhice de que o intervalo entre seu instante e o limite tem a volatilidade das nuvens brancas sob o límpido azul de céu.
Então a velhinha expandia, talvez impensadamente, movida pelo impulso do instinto acionado por esta pulsão psíquica. Falava maquinalmente. Ria ridentemente. Mas muito havia de não contágio. Muitos sorumbáticos rostos encarcerados em preocupação. Os quais por certo entendiam naquela velhinha uma insanidade anunciada, ou assanhamento ridículo, ou uma desconsiderada forma de extravasamento do medo.
Os entre uma e outra extremidade mais enxergavam. Mais notavam a todos e a si mesmos. Sopesavam o medo e a esperança. Enterneciam-se com algumas expressões. Compreendiam certas atitudes. Penalizavam-se com os abatidos. Suportavam com o sorriso da tolerância a velhinha a ponto de não recriminá-la, tampouco incentivá-la. Reconfortavam com palavras afáveis, com afagos, seus íntimos e próximos.
E todos, quando aproximados devidamente pela acentuada espera, passado o período de mútuo conhecimento necessário, se contavam uns aos outros. E as histórias variavam em extensão e dramaticidade, dependendo do temperamento e humor de seu enunciador. E assim de algum modo se reconfortavam entre si.
A velhinha tinha ainda o dom do relacionamento fácil e o inconformismo da espera estática. E ia como um sacerdote afável, um candidato à eleição, um pedinte à cata de tostões, percorrendo os demais pacientes, levando uma palavra de estímulo, uma risada. Esse talvez fosse o modo seu de afugentar o medo que não menos a acometia como aos demais.
Muitos que, como ela, ali estavam para a segunda vez, diziam lembrar-se que da primeira vez ela não procedera como agora. Era uma discretíssima velhinha lá no seu canto, acabrunhada, quase todo o tempo cabisbaixa, quietamente conversando com sua acompanhante.
Lembravam-se que foi então de volta do serviço que tornara de olho limpo e evidente brejeirice senil na face. Falando alto. Aleatoriamente dispensando risonhos cumprifmentos.
E fora agora, de volta para a limpeza do outro olho que dera de ser o antagonismo daquela velhinha da primeira vez. E a razão também se soube logo que as suas perambulações de lugar em lugar foi espalhando.
Era que ao mesmo tempo que punha o moral dos receosos para cima, afirmando que não sentira dor alguma, contava ter vivido uma indescritível visão.
Certo céu azul no qual, vertiginosamente, movimentando-se enormes estrelas de mil cores (lindas, precisavam ver!) brilhavam ziguezagueando feito umas malucas belezas. E ficou muito desolada, quando o médico apagou tudo ao despertar-lhe dizendo que terminara e que tudo estava bem.
Ansiava por reencontrá-las agora na segunda operação. Não via a hora de sua vez. Vão sem medo! Vocês verão estrelas enormes.
E veio a vez segunda da velhinha feliz. Todavia o que se viu no retorno pós-operatório foi aquela velhinha da vez primeira: discretíssima e cabisbaixa.
E se ficou com a sensação de que o céu azul de enormes estrelas multicores não compareceu ao segundo encontro.

Acaso

Data 12/abril/2004

     Pensou. O acaso talvez lhe desse a paz dos impossíveis. Tanto quisera ter feito. E o que fizera não só parecia pouco, como ínfimo. Com se mal tivesse se movido de modo que muita vez entendesse à exaustão. Agir pacientemente uma pessoa daquele tanto e ao fim sequer compreender o quanto de distância ainda havia.
Verdadeiramente aquele pouco lhe parecera então substancioso, que para nele aportar empenhara-se deveras. Não se tratava de ter para si nada que figurasse em demasia; nada que ostentasse extravagâncias, que pusesse em risco a falta, o desdém. Tampouco situações assemelhadas a desdouro e menosprezo.
O fato de tender a ser o quanto possa o bastante a si mesmo era uma opção de existência, não uma arrogância perante aos demais, perante a vida, perante a Deus. Solidão. Solilóquio. Situação de um sujeito que preza muito ter-se a si mesmo, sem projeções, sem quaisquer neuroses avassaladoras. A presença de outrem da forma como as circunstâncias e as naturalidades da vida delineassem. Presenças. Bem ou malquistas, que não soubesse bem se portar ante uma ou outra, ou ante ambas concomitantes. Do que não abdicava era da condição de se autodirecionar, conquanto isso já lhe tivesse acarretado dissabores não poucos. Mas considerava o conjunto de bem-aventuranças confortador.
Sim, o acaso é um comboio portador de inesperados e desconhecidos. Cabe ao homem com ele interagir. Mirá-lo. Sopesá-lo. Admiti-lo. Rechaçá-lo. Atos nada tranqüilos de se pôr em curso. O acaso quase sempre é impositor, não oferece nem possibilita escolha, opção. Traz consigo a trilha a quem se destina. É intruso. E sua irrupção nada tem a ver com as fatalidades prescritas ou impostas por ações ou medidas sobrenaturais. Irrompe como situações, fatos, sentimentos derivados dos interstícios de ações pensadas, articuladas. Do conjunto de conseqüências destas esperáveis, inesperadamente insurge o acaso. E sua força impositiva muita vez anula os obtidos resultados que se buscava e que se esperava.
Trava-se então férrea porfia entre o que se queria que se fizesse e o que se quer fazer. Duro entrevero. Pois que entre a pretensão e a gratuidade nada sobra de invalidade, de desapreço.
Nada é por acaso, a sapiente e sentenciosa afirmação. Sim, tampouco o acaso é por acaso, que, no entanto, é certamente por imponderabilidade da natureza social humana.
Gestar a vida sorvendo os amargores como efeito desses retemperos do imponderável. Não que devesse ser um paraíso, pois que o próprio paraíso sofreu solertemente suas amarguras. E geri-las com o desprendimento dos que se vêem em seu oceano apenas munidos de seu barco e remo, os quais, para não soçobrar, dependem de sua competente maestria em pilotagem. Geri-la com a imprescindível tarefa cabível aos que com sua coragem confrontadora aos medos que a circundam, que a espreitam, que a rondam, que figuram permanente ameaça, caminham na consecução do fatal fim da vida: construção/desconstrução; formação/transformação. E assim o presente sendo o futuro não-construído, o futuro prestes a, não engendrado, instaurar sua autenticação consignando-se em presente brotado pelo acaso desarraigado de quaisquer presumíveis previsões.
A consciência, que ao homem privilegia e superioriza, posto que pondere, que probabilize, tem como de suas mais caras insígnias a improbabilidade, a imponderabilidade.
Os desígnios que o acaso engendra. Os quais sofismam nítidas aparências de insaciedade, por mais inebriantes possam ser as contingentes seduções. As seduções do fácil, do inócuo. Que entumescem homens e homens de um cheio de nadas que se configuram em verdadeiro vazios. Que a esses mesmo homens, muitos, dão a dimensão e a contextura do inespesso, da indensidade. Não por acaso.